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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

VESTÍGIOS DO ESTRANHO NO FAMILIAR: AS CRÔNICAS DE LOBO ANTUNES

Suzana Márcia Dumont Braga

Belo Horizonte 2007

Suzana Márcia Dumont Braga

VESTÍGIOS DO ESTRANHO NO FAMILIAR:AS CRÔNICAS DE LOBO ANTUNES Tese de doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa.

Orientadora: Profa. Dra. Lélia Maria Parreira Duarte

Belo Horizonte 2007

FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia universidade católica de minas Gerais. B 813 v Braga, Suzana Márcia Dumont Vestígios do estranho no familiar: as crônicas de Lobo Antunes. Belo Horizonte, 2007 206f. Orientadora: Profa. Dra. Lélia Maria Parreira Duarte Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras. Bibliografia 1. Crônicas portuguesas. 2. Antunes, António Lobo, 1942-. 3. Psicanálise. 4. Memória. 5. Desamparo (Psicologia). 6. Escritura. I. Duarte, Lélia Maria Parreira Duarte. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduaçao em Letras. III. Título. CDU:869.0-94

Suzana Márcia Dumont Braga Vestígios do estranho no familiar: as crônicas de Lobo Antunes, Banca examinadora da tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais:

___________________________________________________ Dra. Ana Maria Portugal Maia Saliba – Escola Letra Freudiana- Rio de Janeiro

_____________________________________________ Dra. Cleonice Paes Barreto Mourão - UFMG

_____________________________________________ Dra. Ivete Lara Camargos Walty - PUC Minas

_____________________________________________ Dra. Suely Maria de Paula Silva Lobo - PUC Minas

_____________________________________________ Dra. Lélia Maria Parreira Duarte (Orientadora) - PUC Minas

_____________________________________________ Prof. Dr. Hugo Mari Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Letras da PUC Minas

À força de Terezinha, minha mãe, e à leveza de José, meu pai.

AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar quero agradecer à Lélia Maria Parreira Duarte que me acompanhou durante este percurso e soube ser, ao mesmo tempo, rigorosa e terna, como convém a quem aposta no crescimento do outro. Também sou grata a Ana Maria Portugal, Cleonice Mourão e Ivete Walty pelas indicações de caminhos teóricos quando me via perdida; aos outros professores do Programa de Pós-Graduação em Letras da PUC Minas pelo convívio acadêmico e, particularmente, a Maria Nazareth Fonseca que me acolheu em minha chegada e a Suely Lobo pelas contribuições no exame de qualificação; ao grupo “As Máscaras de Perséfone: figurações da morte na literatura portuguesa e brasileira contemporâneas”, cujas contribuições teóricas e discussões foram preciosas, particularmente ao Eugênio, Zahira e Glaura; à Carol, pela revisão do texto; à Rosária, por tantos favores prestados ao longo desse tempo de construção. Outras pessoas foram imprescindíveis, entre elas: Fernanda Martins, minha amiga d’além mar, encontrada no percurso desta tese; Celeste, ao interessar-se por este escrito; Malco, Isadora e Anna Carolina por terem crescido e, hoje, cada um a seu modo, ajudar-me a crescer; João e Matheus, cujos sorrisos têm gosto de amanhecer; Isabel, Jacira, Nívea, Sandra, Bruno, Maria Síria, Pedro e Cláudio pela amizade de ontem, hoje e sempre; Márcia Rosa, que acolhe e dá contorno a minha palavraágua; meus colegas do IEPSI, com quem partilho minhas produções; Carlos pela torcida, compreensão e pelo carinho tão intenso. Agradeço, por fim, ao Programa de Capacitação Docente da PUC Minas, cujo apoio foi fundamental para que esta tese fosse escrita.

Assim Ao poeta faz bem Desexplicar – Tanto quanto escurecer acende os vagalumes. Manoel de Barros

RESUMO

Esta tese apresenta como corpus de leitura os três volumes de crônicas do escritor português António Lobo Antunes e tem como objetivo investigar os vestígios do estranho evidenciado no que aparece como familiar nesses pequenos textos. Para isso inicia com uma reflexão sobre o gênero crônica e faz um esclarecimento sobre o que seria o estranho – conceito freudiano para se referir a um tipo particular de produção literária que excede os domínios do princípio do prazer, espaço anteriormente atribuído por Freud à literatura. O estranho estaria associado ao Registro do Real que, de acordo com Lacan, diz respeito ao que não cabe no campo do simbólico, funcionando como causa da escrita e ao mesmo tempo se fazendo presente nela pela via da enunciação. O conceito de estranho também aproxima-se das considerações de Blanchot e Barthes sobre o que é literatura. Pelo fato de ter nascido no jornal e ainda permanecer nele, a crônica costuma ser vista como uma produção literária de menor importância, destinada apenas ao entretenimento. Entretanto, o cronista pode utilizar-se de temas tidos como triviais e familiares para, a partir deles, mostrar o estranho nas fissuras do real. Dessa maneira, a crônica pode revelar verdades mais contundentes do que as que circulam normalmente nos jornais, tematizando questões fundamentais do ser humano. Essa conclusão é válida, tanto para os cronistas de um modo geral, quanto, particularmente para Lobo Antunes. Apesar de desvalorizadas pelo autor, suas crônicas têm uma dimensão importante por si mesmas e no contexto de sua obra. A forma com que o escritor lida com os temas do dia-a-dia se faz pela via dos vazios, fragmentando as noções do tempo cronológico e mesclando memória e fantasia. Os relatos da infância, apesar de marcados pela vida pessoal do autor, ultrapassam a noção de autobiografia e mostram um passado perdido que não é recuperado pela memória nem dá coerência ao presente. O passado é buscado porque se sabe inexoravelmente perdido. Também as relações do narrador consigo mesmo e com o Outro são marcadas pela vivência de perda e ausência de sentido, destituindo qualquer esperança de que o amor, seja em que nível for, constitua uma garantia para o desamparo inerente à condição humana. Por sua vez, a morte é contraponto da vida, sendo impossível conceber a existência sem ela. O estranho vai se fazer presente também na própria escrita, tida como experiência de perda, ela parte de um não-saber e chega a um não-lugar. Lobo Antunes, ao fazer uso do humor e da ironia, aponta uma insubordinação em relação às normas do mundo contemporâneo, assim como em relação à própria linguagem, que, ao ser machucada pela via do estranhamento, apresenta outras possibilidades. Essas viagens ao que falta sentido, pela via da escrita, têm o poder de evidenciar o objeto poético, em sua consistência absolutamente singular, revelando uma verdade que só a arte é capaz. Palavras chave: literatura, psicanálise, estranho, real, memória, desamparo, escritura.

ABSTRACT The reading corpus of this thesis comprises the three volumes of chronicles by Portuguese writer António Lobo Antunes, published in 1998, 2002 and 2006, respectively. It aims at investigating how the uncanny can arise between the lines of what appears to be familiar in these short texts. It begins with a reflection on chronicles as a literary genre, and clarifies the meaning of 'uncanny': a term coined by Freud to refer to a particular type of writing that goes beyond the domains of the pleasure principle, later associated with the Registry of the Real, which, according to Lacan, refers to that which does not fit in the field of representation. The Uncanny and the Real are also related to Blanchot’s, Barthes’s and Deleuze’s ideas about literature. Lobo Antunes uses day-to-day issues to show the uncanny in the cracks of the real, dealing with fundamental human questions through textual strategies such as the fragmentation of chronological time, which mixes memory and fantasy and goes beyond the notion of autobiography to show a lost past that is neither recovered by memory nor brings coherence to the present. The narrator's relations with himself and with the Other are marked by the abandonment inherent to the human condition, in which love is linked to loneliness and death is the counterpoint of life. The writing itself, focused inwardly, seeks the (lack of) reasons for writing. The presence of fragmentation in the text, as well as of humor and irony, demonstrate an insubordination to the rules of the contemporary world and to those of language itself, showing that no pre-established truth is capable of explaining the precariousness of living. One concludes that, by revealing this emptiness, writing becomes, in an inside-out manner, a way to deal with abandonment – negativity comes to be viewed as a possibility of life, which reaffirms the contact between psychoanalysis and literature. Key words: literature, chronicle, psychoanalysis, the uncanny, the real, memory, abandonment, writing.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................................................10 CAPITULO 1 – A CRÔNICA E O ESTRANHO REAL ........................................................16 1.1 – O lugar das crônicas na obra de Lobo Antunes ...........................................................16 1.2 – Estratégias textuais ......................................................................................................25 1.2.1 – O tempo fora do tempo.........................................................................................26 1.2.2 – O eu fora de si.......................................................................................................28 1.2.3 – A escritura e o fora da linguagem.........................................................................30 1.3 – O realismo e a escritura do real ...................................................................................42 1.4 – Freud, o estranho e a literatura ...................................................................................45 1.5 – A literatura, o real e o imaginário................................................................................52 1.6 – Crônicas de Lobo Antunes: escrita de fragmentos ......................................................61 CAPÍTULO 2 – ESCRITA DE (DES) MEMÓRIAS?.............................................................64 2.1 - Considerações sobre auto-bio-grafia............................................................................69 2.2 - Memórias, des-memórias e escritura............................................................................75 2.3

A repetição do mesmo e do novo .............................................................................94

CAPÍTULO 3 - O DESAMPARO .......................................................................................104 3.1 – “que estranho eu ser eu” ............................................................................................106 3.2 – a loucura ....................................................................................................................111 3.3– “Que estupidez o amor”..............................................................................................115 3.5 – “Haverá vida antes da morte?” ..................................................................................138 3.6 – Tenho medo de gente.................................................................................................145 3.7 – Voltando ao começo... ...............................................................................................151 CAPITULO 4 – A “DES-ESCRITA” ....................................................................................154 4.1 – O riso como pharmacon: remédio e veneno..............................................................167 4.2 – A verdade/mentira da ironia ......................................................................................172 4.3 – A circulação dos modos na escrita ............................................................................179 CONCLUSÃO........................................................................................................................189 REFERÊNCIAS .....................................................................................................................194 APÊNDICE 1 .........................................................................................................................204

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INTRODUÇÃO

O estranho entranhado no familiar das crônicas de Lobo Antunes constitui o tema desta tese. Ela se constrói a partir de alguns pilares do campo da crítica literária e com o auxílio da psicanálise, tendo como ponto de partida algumas indagações. O gênero crônica é tido como um tipo de escrita que, usualmente, trata com leveza dos fatos do dia-a-dia, ou seja, de temas que já são familiares aos leitores dos jornais, espaço que constituiu seu berço e onde ainda permanece. Essa marca costuma levar a discussões quanto à classificação desses textos como sendo literários ou não. Uma das questões estaria justamente ligada ao “familiar”, uma vez que, como se sabe, o termo comporta, de imediato, dois sentidos: um quer dizer conhecido ou, ainda, trivial; outro diz respeito ao que é próprio da família, pessoas consangüíneas que partilham um espaço afetivo comum. Se a crônica trata de fatos triviais, poderia ter qualidade literária? Quanto ao segundo sentido do termo familiar, Lobo Antunes, provavelmente, é um dos poucos escritores de peso que, em sua prosa, refere-se com tanta freqüência, de maneira tão acintosa e repetida, a fatos de sua vida pessoal e a pessoas de sua família. Todos os estudiosos de sua obra enfatizam que nela e, particularmente, nas crônicas, há uma constante presença de suas vivências, o que sugere uma intrigante questão: de que maneira a vida pessoal pode se misturar com a escrita e, ainda assim, ter força suficiente para ser transformada em literatura? O projeto desta tese se constrói levando em conta que as crônicas de Lobo Antunes são da ordem da extimidade – termo criado por Lacan (1967) para se referir ao que é, ao mesmo tempo, íntimo e estranho, pois diz respeito ao que há de mais singular e, ao mesmo tempo, pertence a todos, ou seja, o particular que toca o universal. Há um operador de leitura que parece pertinente para se pensar a presença da extimidade nas crônicas de Lobo Antunes:

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trata-se da banda de Moebius, uma fita atada de maneira torcida de modo que o lado direito leva inevitavelmente ao avesso. A imagem da banda de Moebius, utilizada por Lacan (1967) mostra a importância de se ver o mundo como coexistência de opostos que não se excluem, nem fazem uma síntese, mas remetem necessariamente um ao outro. Isso vale para se pensar a relação estranho e familiar, fato e ficção, particular e universal, morte e vida, saúde e loucura, dentro e fora, eu e Outro . Para sustentar esta tese, foram tomados como eixo os conceitos de estranho e de Real, numa interlocução entre os campos da literatura e o da psicanálise, assim como o conceito de fora, cunhado por Blanchot e adotado por diferentes autores, entre eles, Gilles Deleuze. Esses autores, embora procedentes de campos diversos, estão voltados para um tipo de escrita marcada por vazios, em que o estranho possa se escrever. Como as crônicas, ao tratarem o familiar, poderiam dar lugar ao estranho? Tecidas num misto de leveza e densidade, tanto no que diz respeito à natureza dos ditos quanto à do dizer, encontramos nelas uma desestabilização do que é preconizado pela doxa, numa opção pelo paradoxo. Elas apontam as contradições da existência humana ao apresentar um narrador estranhado diante de si e do outro, na medida em que o eu se apresenta fraturado, assim como fragmentadas e sem certezas se encontram as relações com o meio familiar e social. A execução deste projeto será feita em quatro capítulos. No primeiro, questiona-se o lugar supostamente menor que comumente a crônica costuma ter, ao ser comparada a outros gêneros literários considerados de maior peso, tanto no que diz respeito à crônica, de modo geral, quanto no contexto da obra de Lobo Antunes. Benjamin (1987b) enfatiza a importância do cronista na função de buscar, pela via dos fragmentos, os vestígios da história que foram desconsiderados, precisando, para isso, estar atento também aos “pequenos” acontecimentos. Esses fatos miúdos, tidos como restos, podem ser a morada do estranho. Este é transmitido a partir de algumas estratégias textuais que serão apresentadas: a forma de

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tratamento do tempo e da memória; a questão do desamparo presente em diferentes níveis, desde as relações do narrador consigo mesmo, quanto nas relações familiares e de casal; nas relações sociais e, por último, na escrita sobre a própria escrita. A segunda parte do primeiro capítulo será essencialmente teórica e constituir-se-á como um desvio necessário para retomar o caminho a seguir, pois pretende-se elucidar os conceitos psicanalíticos que serão utilizados na análise das crônicas a ser feita nos capítulos seguintes. Como o objeto “texto literário” tem como característica a impossibilidade de ser apreendido em sua totalidade, a crítica literária costuma lançar mão de saberes de áreas diversas, com o objetivo de circunscrevê-lo. O que se escreve? Para que se escreve? Por que se escreve? A psicanálise construiu algumas possibilidades de responder a essas questões. Dois conceitos psicanalíticos, um de Freud e outro de Lacan, serão centrais na tese e precisam ser esclarecidos, uma vez que a psicanálise entra como um saber estrangeiro que se insere no campo da literatura com o objetivo de contribuir para o enriquecimento do mesmo. Inicialmente será preciso especificar qual conceito de Real é objeto desta reflexão, distinguindo o Registro do Real, a partir de Lacan, da noção literária de realismo. Busca-se também pensar no registro Imaginário e sua relação com o Real no que diz respeito à produção literária. O Real, considerado como um registro, tem um sentido diametralmente diferente do que comumente é entendido como realidade e, a partir dele, pode-se compreender melhor o que seria o “estranho”. O esclarecimento desse conceito terá como referência básica o ensaio em que Freud (1919)1 reflete sobre o tema. Na literatura, o estranho ampliaria o conceito de estética para além dos domínios do princípio do prazer - espaço que, inicialmente, Freud havia dado à literatura - atribuindo, a partir de então, um estatuto diferente ao imaginário. O estranho pode ser visto como uma forma de circunscrever o real, termo utilizado por Lacan para referir o que 1

Com o objetivo de facilitar para o leitor, no que diz respeito à obra de Freud ,optou-se por colocar no corpo do texto o ano da primeira publicação, em alemão, embora o ano da publicação consultada, em português, seja 1976.

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está fora da ordem simbólica, do registro da palavra, mas que pode ser mostrado pela escritura. Importa acrescentar que o conceito freudiano de estranho foi tomado por Deleuze para falar de um tipo especial de literatura: aquela marcada pela desterritorialização, que evidencia os vazios, a incompletude. Pretende-se demonstrar que, também no campo da crítica literária, alguns autores têmse ocupado em distinguir a noção de real da de realismo, debruçando-se sobre textos que articulam de maneira particular a relação entre o imaginário e o real. Para isso, criaram novos conceitos, entre eles pode-se citar: “fora-linguagem” de Blanchot, “efeito de real” de Barthes, ou o “fictício” em contraposição ao “imaginário”, de Iser, ou um “novo real” de Bosi. O que há em comum entre esses autores é a crença de que a literatura pode ultrapassar os limites da representação, de modo que o real possa ser transmitido de maneira mais viva, mais pulsante. No capítulo dois será feita uma reflexão sobre tempo e memória, com o objetivo de mostrar de que maneira vida e escrita se entrelaçam nas crônicas, não para simplesmente dizer de uma realidade de natureza biográfica, vivida, mas para passar por ela e apontar uma ultrapassagem da noção de realidade. Para alcançar esse objetivo faz-se necessário pensar no tempo, não associado à linearidade de chrónos, mas numa dimensão em que passado, presente e futuro se misturam e se entrelaçam. Na repetição do mesmo, há lugar para o novo. Memória e imaginação são indissociáveis e, portanto, a escrita é sempre criação, porta em si o novo. Da mesma maneira, no que diz respeito ao familiar, o recordado pode dar lugar, pela via do fragmento, ao estranho, a um jamais capturado, real que, apesar de sempre presente, nos escapa. A temática do capitulo três será o desamparo que, de acordo com Freud, é condição especialmente fértil para o surgimento do estranho. O desamparo se faz presente nas crônicas em diferentes contextos:

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- nas relações do narrador consigo mesmo, mostrando um eu fraturado que não sabe de si e/ou da loucura encontrada no hospital psiquiátrico, indicando os tênues limites entre a suposta sanidade e a loucura; - nas relações amorosas que nunca são complementares, destituindo qualquer pretensão imaginária de que o amor possa ser um remédio para a existência. Os narradores masculinos e femininos são marcados pela solidão e apresentam posições geralmente antagônicas e igualmente falidas para lidar com os desencontros inerentes às relações a dois; - nas relações com pessoas representantes da linhagem paterna de modo geral e, em especial, com o pai e, mais especificamente ainda, com o silêncio do pai; - o desamparo aparece também na dificuldade das personagens das crônicas em lidar com a morte, tanto no que diz respeito à morte biológica, quanto às vivências de ruptura presentes na vida. Pode-se perceber três maneiras diferentes de presença da morte nas crônicas: quando se trata da morte presente na vida do narrador, quando diz respeito à morte de pessoas queridas e quando a morte se apresenta de maneira mais impessoal nas vivências relativas às experiências na guerra e na clínica médica; - por fim, na banalidade encontrada nas relações sociais, no nonsense dos modelos estereotipados de trocas sociais, nos processos de comunicação que são marcados pela incomunicabilidade. O capítulo quatro constará de uma reflexão sobre a escrita, uma vez que várias crônicas de Lobo Antunes tratam dessa temática. Aqui, os conceitos de Barthes e Blanchot sobre literatura como experiência de perda serão de grande valia, pois condizem com as crônicas de Lobo Antunes, tanto no nível do enunciado quanto da enunciação. O conceito de Fora, criado por Blanchot, permite articular algumas imagens poéticas criadas pelo crítico/escritor: outra noite, outrem, ele; todas elas para se referir a uma vivência de apagamento do eu, tão necessária à criação literária.

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Também será considerada a possibilidade da ironia e do humor serem utilizados como formas de apontar o estranho no campo do literário. Parte-se do pressuposto de que essa relação tem sutilezas, uma vez que o riso, à primeira vista, exerce uma função de descarga psíquica e, por isso, contrária a do estranhamento, que é de transmitir tensão. Será importante mostrar que o humor e a ironia têm estatuto diferente do cômico, este sim, voltado apenas para a descarga de tensão. O humor e a ironia são possibilidades de subversão da linguagem, característica fundamental do texto literário. O humor tem, portanto, o poder de trazer leveza, sem, contudo, desfazer a dimensão trágica. Através dele, de acordo com Calvino, pode-se dar um salto e tocar o poético. Para o estudo dessa questão serão estudadas contribuições de Freud (1927b) sobre o humor, assim como de teóricos da crítica literária sobre tipos e função da ironia. Ainda no capítulo quatro, buscar-se-á, a partir dos modos lógicos de Aristóteles, as diferentes posições de Lobo Antunes no que diz respeito à escrita: modo possível impossível; modo contingente - necessário. Fazendo-se um contraponto das falas do escritor, em entrevistas, com as crônicas que se referem à escrita, pode-se ver que, partindo do modo possível, o escritor português faz um giro pelos quatro modos, e mostra que a escrita constitui sua razão de viver. Na conclusão será tomado como ponto central do trabalho a questão do vazio, que funciona como um sorvedouro que traga todos os temas tratados nas crônicas: o tempo das desmemórias, o desamparo, a escrita fora de si. Seria o vazio o que afinal se transmite no processo de recepção da escrita, podendo tocar o leitor e levá-lo a produzir? Nesse sentido, procurar-se-á demonstrar que é também pela via dos vazios que se faz o encontro da literatura - em que o estranho se faz presente - e a psicanálise. Ambas têm como questão central um modo de operar com a perda de certezas que não seja pela via do tamponamento, mas incluindo-a no texto escrito que recria o texto da vida.

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CAPITULO 1 – A CRÔNICA E O ESTRANHO REAL

O mundo é um mundo entre os mundos até que encontra o escritor, o homem destinado a seus vazios. (Ana Portugal)

1.1 – O lugar das crônicas na obra de Lobo Antunes

Por ser comumente publicada no espaço volátil do jornal, corre-se o risco de se ver a crônica como efêmera, destinada apenas ao entretenimento do leitor. No caso específico de Lobo Antunes, essa observação pode ser encontrada em contextos diversos, entre eles, ressaltamos declarações feitas pelo autor em entrevistas ou através do narrador das próprias crônicas. Vejamos: Em entrevista, afirmou a Blanco (2002) não crer na importância das crônicas publicadas, seriam elas “coisinhas sem nenhuma pretensão”(BLANCO, 2002, p.113), servindo apenas para divertir o leitor e, por isso, não as considerava literatura. Em outra ocasião, o autor disse que vive apenas em função da escrita de romances, limitando-se as crônicas a ajudar no seu sustento financeiro. A destituição do valor da crônica se faz presente, inclusive, em algumas delas. Em “Ultima crônica”, o narrador afirma que:

necessitava de todo o tempo para os meus romances, que escrevo devagar e com dificuldade, e tornava-se difícil abandoná-los de quinze em quinze dias para redigir uma página de revista imaginando que os eventuais leitores de domingo gostariam de um trecho leve, simples, agradável de escrever – o contrário do que pretendo nos meus livros. (ANTUNES, 1998, p.341)

Entretanto, as crônicas continuaram a ser escritas e foram posteriormente agrupadas num segundo e depois num terceiro livro.

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Estudos sobre as crônicas mostram que, ao serem organizadas em livro, elas são avaliadas como tendo méritos literários importantes, entre eles o de inaugurarem uma outra forma de pensar sobre o gênero (REIS, 2004). O que haveria de diferente nessas crônicas para que os críticos literários vissem nelas algo de inaugural? Para responder a essa pergunta, fazse necessário partir da delimitação da crônica. Para Santana (2003):

A crónica é um gênero que a imprensa oitocentista criou e consagrou. A partir de então a crónica evoluiu e adaptou-se aos tempos, mas constitui ainda hoje uma forma de escrita característica do espaço público moderno: ligeira, criativa, vivendo do brilho efêmero da atualidade, como as páginas do jornal onde nasceu; destinada a ser volátil. (SANTANA, 2003, p.9)

A autora considera também que a crônica pode ter um conteúdo informativo ou ter como assunto fatos noticiosos do momento, mesmo que tomados de maneira marginal. Quando opta pela marginalidade, assumiria a função de entretenimento, ou seja, seria uma conversa amena, que trataria daquilo que já nos é familiar, trazendo prazer pela via do apaziguamento. Assim, o gênero ficaria reduzido a um espaço de menor importância, tanto nas palavras de Santana, quanto nas do narrador da crônica de Lobo Antunes já citada. Por fim, Santana questiona se o gênero crônica pode ser classificado como literário, já que seu lugar usual é nos periódicos. Sua conclusão é de que a resposta não é simples, pois depende de uma série de fatores que esbarram na eterna discussão do que é ou não literatura. O que caracterizaria um texto como literário? Qual a diferença entre jornalismo e literatura? Vários autores tratam dessa temática no livro Jornalismo e literatura: a sedução da palavra, coletânea organizada por Castro e Galeno (2003). Diante da polêmica sobre as convergências e divergências entre jornalismo e literatura, os autores apresentam como convergência o trabalho com a linguagem, embora seu uso difira nos dois gêneros. Afinal o texto-reportagem deve primar pela objetividade, pelo compromisso com a informação, o que

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não acontece com o texto literário, que pretende pensar além dos fatos. A ambigüidade da linguagem literária abre espaço para a (des)construção de sentidos, pois seria uma espécie de peste que traz desconforto porque mina a crença na univocidade da linguagem (SATO, 2003). A crônica ocuparia dentro do jornal um espaço intermediário, seria uma espécie de gênero híbrido, podendo estar mais próxima do texto jornalístico ou do texto literário. Quando está mais voltada para o literário, a inventividade do cronista permite “criar um novo real” (SATO, 2003). Em outro texto da mesma coletânea, Meneses afirma que a crônica se apropriaria do cotidiano para ir além dele, mostrando o que o senso comum não vê ou não quer ver. “O olhar do cronista sobre o mundo é esse, de certo estranhamento, de tentar descobrir (e achar) as fissuras do real, o que parece invisível para a maioria das pessoas” (2003, p.165). O cronista se alimentaria dessas fissuras do real, o seu compromisso com a realidade é de outra ordem, ele volta-se para detalhes que podem passar despercebidos a outras pessoas. Ambos os autores afirmam acreditar no poder subversivo da crônica, em comparação com o texto jornalístico. Essas contribuições mostram que a delimitação de gênero não é simples, há sutilezas que não podem ser desconsideradas. Essas reflexões podem ser cotejadas com as de Walter Benjamin (1985b) pois, no que diz respeito à História, o filósofo dá um lugar diferenciado ao cronista, quando a finalidade é contar a história dos vencidos2. Ele deve narrar os acontecimentos, sem distinguir os importantes daqueles tidos como triviais, pois a história oficial é construída a partir de uma concepção de continuidade que precisa ser explodida. O tempo é saturado de “agoras”, por isso deve-se buscar uma outra história pela via dos vestígios: fissuras da história oficial, onde

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Embora as considerações de Benjamin guardem originalmente um sentido de engajamento político em defesa dos oprimidos, nesta tese o termo cronista será tomado pela via do que Benjamin (1985c) chama de narrador do romance: aquele que leva o incomensurável a seus últimos limites e anuncia a profunda perplexidade de quem o experimenta. Pode-se concluir que esse narrador não teria um saber a transmitir porque fala do que é crônico na existência humana, independentemente da classe social. Assim, a condição de opressão pode ser estendida para a de desamparo, conceito freudiano usado para referir à condição humana.

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é preciso escavar ruínas e escombros em busca de episódios negligenciados, detalhes acessórios, escovando a história num movimento a contrapelo (BENJAMIN, 1985b). Essa concepção de Benjamin traz dois pontos importantes para a reflexão que ora se inicia: salienta o trabalho do cronista, assim como enfatiza a importância dos vestígios. Vestígios que devem ser procurados, pois não são evidentes à primeira vista. É a partir deles que importantes descobertas podem ser feitas. O aparentemente corriqueiro costuma guardar revelações importantes. Retornando à questão da distinção entre o texto jornalístico e o literário, vale apresentar o pensamento de Blanchot (1997) no que diz respeito ao texto literário. Para ele, a diferença da linguagem literária para a do dia-a-dia é que as palavras no cotidiano exercem a função de representar coisas que estão ausentes. É o que, em termos ideais, espera-se de um texto jornalístico, que ele seja capaz de informar com precisão, com objetividade e fidelidade aos fatos. Já o texto literário não desempenharia o mesmo papel, pois não manteria as mesmas relações com os fatos. Nele a palavra sofre de uma falta primordial, na medida em que o sentido não está garantido ou determinado. “A irrealidade da ficção deixa as palavras afastadas das coisas e as coloca no limite de um mundo para sempre separado, por isso elas não podem se contentar com seu puro valor de sinal” (BLANCHOT, 1997, p.79). O mundo da ficção é um mundo de linguagem e por isso precisa ser visto e compreendido em sua própria realidade verbal. Portanto, não é o gênero que vai decidir se um texto é ou não literário, mas muito mais o trabalho com a linguagem, a possibilidade de deslizamento dos significantes, de modo a produzir novos efeitos, outras significações. Pensando nessas reflexões de Blanchot e a partir das demarcações sobre a crônica cabe indagar que fatores destacados podem ser encontrados nas crônicas de Lobo Antunes. A primeira característica apontada diz respeito à ligeireza. Sem dúvida, os textos são curtos e leves. Entretanto, a temática não diz respeito a temas que são notícia de jornal, nem estão

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comprometidos com a cronologia. A marginalidade observada nas crônicas apresenta especificidades que devem ser destacadas e estudadas com mais vagar. Quanto ao item entretenimento, ultrapassam as crônicas a classificação de conversa amena. Em Lobo Antunes, a crônica “é o lugar de expressão mínima, mas tensamente concentrada da narratividade” (REIS, 2004, p.20). Além disso, este cronista escreve sobre um cotidiano marcado pela solidão e pelo desencontro presente nas relações humanas (RAMON, 2004). Não se trata de textos que apontem caminhos ou valorizem uma determinada posição em contraposição a outra; é a própria condição de existir que é apontada como difícil para o ser humano. Ao final da leitura dos três livros de crônicas, o leitor pode certamente afirmar: está fora de causa que a vida possa ter um happy end. Essa constatação se faz presente tanto nas crônicas mais intimistas, em que as relações afetivas familiares e amorosas são tratadas de forma nostálgica ou desesperançada, assim como nas que mostram as relações sociais num sentido mais amplo, tratando dos costumes da contemporaneidade, da guerra, da política, enfim das vãs estratégias de luta pelo poder. As temáticas giram em torno da solidão, da morte e do fascínio pelo abismo da vida e do tempo. Entretanto isso não quer dizer que elas sejam amargas, pois, ao serem construídas com uma linguagem poética, torna-se impossível assim classificá-las. Como afirma Paulino (2006), a boa literatura, especialmente na modernidade, localiza-se entre a beleza e o horror. Em estudo clássico sobre a crônica, Antonio Candido (1992) faz reflexões que podem ser úteis neste momento. Inicialmente reproduz o pensamento vigente de que a crônica seria um gênero menor, mas justamente com o objetivo de desmontar esse preconceito. Primeiro afirma que tanto pela temática quanto pela composição aparentemente solta, a crônica se ajusta à sensibilidade de todo dia. Em sua despretensão, pode “recuperar com a outra mão uma certa profundidade de significado e um certo acabamento de forma que de repente podem

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fazer dela uma inesperada, embora discreta, candidata à perfeição” (CANDIDO, 1992, p.1314). Ainda no que diz respeito ao gênero, Antonio Candido lembra que “o fato de ficar tão perto do dia-a-dia age como quebra do monumental e da ênfase (...) quando pega no miúdo mostra uma grandeza, uma beleza e uma singularidade insuspeitadas” (CANDIDO, 1992, p.14). Assim a crônica fica mais próxima da poesia, principalmente quando utiliza o humor. Mostrar a grandeza a partir do miúdo é uma característica das crônicas de Lobo Antunes. O olhar que o autor tem sobre o cotidiano é, a um só tempo, cortante e leve. O humor entra como elemento fundamental que permite o questionamento dos costumes, das demandas vãs de um mundo povoado por solitários que buscam inutilmente amor e reconhecimento. Se é marcada pela efemeridade dos periódicos, por estar publicada num espaço visto como transitório, a perspectiva da crônica seria a do rés do chão, diz Antonio Candido. E, quando acontece de serem agrupadas em um livro, podem ter uma durabilidade muito maior que a do seu destino habitual. Citando a Bíblia, o crítico afirma “o que quer salvar-se acaba por perder-se; e o que não teme perder-se, acaba por se salvar” (CANDIDO, 1992, p.15). A crônica nos levaria a conviver intimamente com a palavra, o que, em última instância, é a razão de ser de qualquer texto literário. Ou seja, o pensamento de Antonio Candido é condizente com o de Blanchot. Em sua despretensão, continua o crítico, a crônica acaba por “penetrar poesia adentro” (CANDIDO, 1992, p.15). O fato miúdo, o toque humorístico e o tom poético representariam o “encontro mais puro da crônica consigo mesma” (CANDIDO, 1992, p.15). Por serem leves, elas podem comunicar, mais que num estudo intencional, a visão do homem em seu todo-dia. Sobre a expressão “rés do chão” vale uma reflexão que permite o prosseguimento do caminho que agora se inicia. Ela faz lembrar algo que se encontra no nível do solo, concreto, aquém daquilo que a linguagem é capaz de capturar. Ora, se a linguagem vista como

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representação é definida como “perda da coisa”, como essa coisa pode reaparecer no texto? De que maneira a linguagem literária seria capaz de distanciar-se da coisa, do concreto, e, ao mesmo tempo, restituí-lo? Como é possível fazer esse movimento aparentemente contraditório? Como apontar o abismo entre a palavra (espaço da representação) e a coisa e, apesar disso, dizer o indizível? Como é possível atravessar o espaço do familiar para tocar o estranho? É em torno dessas questões que este trabalho circula. Voltando ao texto de Candido, observamos que ele nos alerta para o equívoco de acreditar na noção duvidosa reinante de que as coisas sérias são graves e pesadas, e, conseqüentemente, que a leveza seria superficial. Para o autor, as crônicas podem dizer as coisas mais sérias “por meio do zigue-zague de uma aparente conversa fiada” (CANDIDO, 1992, p.20). Por isso, pode haver nelas muita coisa a se explorar. Para conseguir esse efeito de misturar densidade e leveza, o cronista pode usar diferentes estratégias textuais: diálogos, narrativa próxima à dos romances, ou se aproximar de uma exposição poética, semelhante a uma biografia lírica. Os dois últimos itens apresentados são uma constante nas crônicas de Lobo Antunes: a narrativa romanesca é tão evidente que muitas passagens dos romances do autor se encontram nas crônicas, algumas inaugurando relatos; outras, retomando-os. Já a exposição poética semelhante a uma biografia lírica é tão reincidente que valerá um dos capítulos desta tese. Portanto, não é possível ver as crônicas de Lobo Antunes como desvios do trabalho do romancista, caso se considere este último como sendo sua verdadeira vocação. Elas constituem, de acordo com Seixo, um contraponto importante dos romances do escritor (SEIXO, 2002). Além disso, embora o autor as defina como “um trecho leve, simples, agradável e fácil de escrever” (ANTUNES, 1998, p.341)., isto é, apesar da leveza, têm elas uma forte densidade, característica nem sempre comum a esse gênero literário. Calvino (1990), ao

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incluir a leveza entre as suas propostas para o próximo milênio, não a colocou como indicativa de falta de densidade. Pelo contrário, considera que a leveza se cria no processo de escrever como um salto ágil e imprevisto que traz consigo a possibilidade de sobrelevar o peso do mundo. É a experiência do peso da existência que capacita o leitor a admirar a leveza da linguagem. Portanto, as crônicas de Lobo Antunes revelam uma ética mais ampla, ultrapassando em muito as informações passivas que habitam os jornais do mundo do entretenimento. Lobo Antunes, em outros momentos das entrevistas a Blanco (2002), faz declarações sobre a literatura que devem ser retomadas: elogia os escritores poetas, porque são capazes de ser concisos e afirma que ele preferiria escrever poesia, mas sente-se incapaz de fazê-lo. Mais adiante, no mesmo livro, diz que sua “prosa mais próxima do verso são as crônicas” (BLANCO, 2002, p.227). Assim, o poético é um alvo perseguido pelo autor que vê nas crônicas que publica uma proximidade com aquilo que busca. Essa conotação poética da crônica é inclusive tema de uma delas – “Crónica para quem aprecia histórias de caçadas” –, quando o narrador compara o ato da escrita da crônica a uma caçada, cujo objeto3 poético é difícil de apreender/prender: “a crônica, olhando para todos os lados, avança um tudo-nada a pata de uma frase, pronta a escapar-se à menor desatenção, ao menor ruído.” (ANTUNES, 2006, p.181). Nessa crônica, o narrador relata a luta com a palavra em busca de algo que se encontraria a partir dela, mas a um passo além. A busca do objeto poético é tarefa do escritor que se faz presente seja qual for o gênero de sua escrita. Escrever seria então equivalente tanto à morte que se perfaz na caça, quanto a um parto, ao nascimento de um bebê que se deixa ver o mundo pela primeira vez: “bem a percebo ao fundo, escondida, reparo num pedacinho do pescoço, metade de um olho, um frémito de pele, mas não sei se é macho ou fêmea, grande ou 3

Mannoni (1991), no texto Psicanálise e literatura, afirma que o trabalho literário concretiza-se inevitavelmente num objeto (de natureza, é verdade, muito particular) que se desprende do autor como uma espécie de excreção.

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pequena, triste ou alegre” (ANTUNES, 2006, p.182). A caneta com que escreve seria, assim, arma ou instrumento cirúrgico que se põe à espreita do objeto poético a surgir em seu esplendor, objeto esse que toca e atravessa o eu e se depara com a estranheza: “sou ao mesmo tempo o matador e a presa, é o meu coração e a minha cabeça que busco, ou qualquer coisa no meu coração e na minha cabeça, a sua parte de trevas, de sombra” (ANTUNES, 2006, p. 182). Assim o termo “caça” se desdobra em dois sentidos diferentes: perseguir como equivalente a matar, assim como a procurar(-se). Como “A última crônica” – já citada – foi publicada em livro em 1998 e “Crônica para quem aprecia histórias de caçadas” em 2006, fica a pergunta: pode-se dizer que, com o passar do tempo, a opinião de Lobo Antunes tem se modificado, de modo a retirar a crônica desse lugar renegado onde as colocou num primeiro momento? O reconhecimento do valor literário de algumas crônicas pode ser encontrado também na crônica “Da morte e outras ninharias” em que se lê a seguinte classificação:

Em África um espírito qualquer segredou-me ao ouvido - Experimenta a direita Experimentei a direita, que desenhava letras com dificuldade numa caligrafia infantil e, surpresa minha o que me saía da caneta era totalmente diferente. Para todos os outros actos, cartas, formulários, receitas continuei a utilizar a esquerda, tão rápida, tão fluida. Guardo preciosamente a direita para os livros no receio que seja o que for que existe nela se gaste e acabe. Com essas crônicas varia: depende da disposição da mão e as da esquerda são bastante piores. Não vou dizer qual delas estou a alinhar esta, mas julgo ser fácil para um leitor atento adivinhar. (ANTUNES, 2006, p.146) (grifo nosso)

Haveria então crônicas consideradas pelo narrador como estando à altura dos romances; seriam aquelas “escritas com a mão direita”, associadas a letras desenhadas numa caligrafia infantil – infância tão presente na obra do autor – e que produzem uma escritura diferente das que se equiparam a outros atos corriqueiros de escrita, provavelmente sem vir “da parte de trevas do coração”. Assim, o narrador não vê com o mesmo olhar todas as suas crônicas. Algumas aproximam-se da poesia pela concisão, outras têm a mesma cepa dos

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romances. E há as que são consideradas mais pobres, com uma escrita próxima do texto utilizado para comunicados objetivos ou para contar histórias, talvez estas, sim, sem a densidade buscada pelo romancista. A crônica seria também, para Lobo Antunes, um meio de buscar o objeto poético fugidio, embrenhado entre memórias e fantasias. De acordo com o narrador, o que as crônicas desejam “é que tenham mãos nelas no momento exato, e o momento exato nem um segundinho dura”. (ANTUNES, 2006, p.182). Para realizar esse desejo, o cronista recorre a algumas estratégias textuais no nível dos enunciados e das enunciações, todas elas marcadas por uma exterioridade, um fora4 que traria consigo a possibilidade de mostrar o estranho.

1.2 – Estratégias textuais

Para que os vestígios do estranho se evidenciem, é necessário que o escritor maneje o terreno fértil do imaginário. Em Lobo Antunes, esse manejo se faz a partir de algumas estratégias textuais que serão apresentadas a seguir, mas que constituirão, cada uma delas, um capítulo desta tese.

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Fora é um conceito de Blanchot para se referir à linguagem no texto literário. É uma estratégia do pensamento que marca a falência do logos clássico, colocando em cheque noções centrais para a filosofia e para a teoria literária, tais como autor, linguagem, experiência, realidade e pensamento (LEVY, 2003). O conceito de Fora permite articular as contribuições da crítica literária de Blanchot e Barthes com o conceito de estranho cunhado por Freud (1919) para se referir a uma literatura que não se escreve a partir dos domínios do principio do prazer. Ele será apresentado com mais vagar no capítulo que se refere mais especificamente à escritura.

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1.2.1 – O tempo fora do tempo

Se, na própria etimologia do termo crônica, a dimensão do tempo ligado a chrónos já está indicada, o tratamento dado ao tempo nesses textos de Lobo Antunes marca uma diferença. Encontramos recorrentes evocações e remissões a passados possíveis, a um tempo fora do tempo, a uma memória que se debruça sobre si mesma, em que passado e presente se entretecem, se entrelaçam, apontando para um tempo mítico que não pode mais ser medido pela cronologia. Esses entrecruzamentos de tempos mostram que não se trata de escrita de memórias da infância, mas sim de como essas ditas lembranças invadem o presente, modificando-o, provando como é falacioso pensar-se em escrita como mera rememoração. Pelo contrário, nessa volta ao passado, encontramos a repetição, não do mesmo, mas do novo. Da mesma forma, narrativas escritas sobre um tempo presente são subitamente infiltradas por memórias de um passado distante que interfere no presente e, às vezes, até na dimensão do futuro. O próprio Lobo Antunes afirma a Blanco que “a memória não tem a ver com o passado, também tem a ver com o presente e talvez com o futuro” (BLANCO, 2001, p.114). Ou seja, é um modo de repetição que remete ao conceito deleuziano de devir, um tempo não localizável na cronologia, que diz respeito a um vir a ser, pois “tem sempre um componente de fuga que se furta à sua própria formalização” (DELEUZE, 1997, p.11). O devir diz respeito ao inesperado, ao novo; por isso, o que importa no devir é o movimento, o tornar-se. Não significa progredir ou regredir de acordo com uma série, mas movimentar-se por comunicações transversais. Em contraposição à estrutura de árvore que se caracteriza pela centralização, hierarquia e genealogia, o devir é marcado pela divergência, ramificação e multidimensionalidade (DELEUZE e GUATTARI, 1997). Pode-se constatar essa mistura de tempos, a título de exemplo, na crônica “O som dos meus ossos”:

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Às vezes, quando sozinho em casa, oiço cantar ao longe. Quer dizer: parece-me que alguém canta ao longe para mim, uma voz de mulher que não conheço e se perdeu algures no passado. Levanto-me do sofá, vou à janela e ninguém, da mesma forma que ninguém no quarto, no corredor, na marquise. Ninguém e todavia a voz continua, não pára lá da varanda, não na praça, dentro do apartamento mas onde, talvez na minha cabeça mas porquê (...) que estranho eu ser eu, que esquisito morar aqui. Depois penso que estranho é eu achar esquisito eu ser eu e estranho e esquisito é achar ser esquisito morar aqui... a voz tornar-se-ia mais próxima e eu encontraria a mulher que canta. A minha mãe? Não me recordo de minha mãe cantar, sempre séria diante do fogão, entre suspiros.” (ANTUNES, 2002, p.263)

O tom nostálgico refere-se a uma saudade de um tempo que não se sabe se foi vivido, mesmo ficcionalmente. O que seria memória? O que seria imaginação? Parece perguntar o narrador. O passado invade o presente, paradoxalmente percebido como falso e verdadeiro, trazendo ao narrador uma sensação de estranheza. O passado introduz elementos no presente os quais fazem vacilar qualquer certeza do narrador, tanto no que diz respeito às lembranças quanto ao momento presente. Há uma voz que chama, trazendo a nostalgia de um tempo não vivido, que acenaria para uma mãe idealizada de cuja existência o narrador duvida. Vemos assim que o passado se infiltra no presente, não para dar consistência a este, mas, ao contrário, para diluí-lo, para marcá-lo também pela estranheza, pela sensação de desconhecimento. “Que estranho eu ser eu”. Mas também é estranho o próprio questionamento: “estranho é eu achar esquisito eu ser eu.” Faz-se assim um movimento mise en abime em que o narrador olha o passado, o presente e não se reconhece, assim como não reconhece suas interrogações, num estranhamento que leva a outro. A crônica citada e grande maioria das outras são escritas em primeira pessoa ou referem-se a um personagem chamado Lobo Antunes. Esta estratégia narrativa pode dar a impressão de que os escritos seriam relatos memorialísticos, recuperação de lembranças vividas na infância. Entretanto, acredita-se que a questão autobiográfica precisa ser relativizada, uma vez que a memória atualizada na escrita refere-se muito mais a um eu ficcionalizado. O conceito de biografema cunhado por Barthes (1977) cabe aqui, pois não se

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trata de retratar uma vida, mas, muito mais, compor uma biografia descontínua que evidencia minúcias, detalhes insignificantes que convidam o leitor a conversar com os próprios fantasmas, algo muito diferente de uma biografia-destino onde tudo se liga (PerroneMoisés,1983). Essa temática importante na composição desta tese será retomada e desenvolvida no segundo capítulo deste trabalho.

1.2.2 – O eu fora de si

Lobo Antunes afirma, em entrevista, que os temas que povoam sua escrita são: “a vida, a morte, a ausência de amor, a incomunicabilidade” (Ler, n 37 p. 40, citado por Ramon, 2004, p.188) e aqui não há diferença entre os romances e as crônicas. Ramon (2004) acredita que a ausência da capacidade de compreensão, entendida como capacidade cognitiva básica do processo de inserção do indivíduo no meio e na coletividade humana a que pertence, parece ser o grande motivo da escrita antuniana. O nosso autor escreve porque não sabe, mostrando-se perplexo diante dos enigmas da existência. Assim essa escrita não é derivada de um saber, mas do desamparo decorrente da ausência de saber. Pode-se dizer que o narrador apresenta um eu que não sabe de si, não se compreende, assim como não compreende o mundo e que esse não-saber é ponto de partida e de chegada da escrita. Escreve porque não tem respostas e em seus textos não se encontram respostas. Pode-se ler em uma de suas crônicas: “E, se me fosse possível falar de um livro, não seria necessário escrevê-lo.” (ANTUNES, 2006, p.195). Nesse ponto, Lobo Antunes faz lembrar Marguerite Duras (1994), que em seu livro Escrever, diz que escreve porque não sabe e que, se soubesse, não escreveria porque não ia valer a pena.

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O eu é cindido, assim como cindidas são as relações entre as pessoas, e com a escrita. Portanto, a sensação de fragmentação e de desamparo é uma constante. Esta incompreensão do sujeito da escrita desemboca numa inadequação diante das questões relativas à vida e à morte. A noção de tempo lacunar se liga diretamente à concepção de sujeito dividido, o tempo é lacunar porque o sujeito da escrita não sabe de si. Ou seja, as noções de tempo e espaço afetivo não são utilizadas com o objetivo de dar uma referência. Pelo contrário, o que elas produzem é uma perda de certezas, não se pode localizar o tempo, nem no espaço afetivo. Veja-se, por exemplo, em “Boa noite a todos” (ANTUNES, 2002, p.33-35):

Quando o comboio partir não digas adeus porque ficaste no cais. Foi apenas o teu passado que se foi embora, na terceira ou na quarta carruagem de segunda classe, precisamente a que acaba de desaparecer no túnel. Foi apenas o teu passado que se foi embora. O teu presente ficou. O teu presente, isto é: ir ao bar da estação sem ter tirado o lenço da algibeira, sem saudade, sem remorso, sem pena, e olhar pelo vidro da porta o cais vazio, com o relógio a marcar uma hora que não é a tua. Não penses na bagagem que ninguém recolherá na gare de uma cidade onde não irás nunca: o que arrumaste lá dentro deixou de pertencer-te. Pertence-te esta tarde de Lisboa, pode ser que algum pombo, alguma estátua, o rio. Mete a mão no bolso e deita fora a chave de sua casa, o bilhete de identidade, a agenda dos telefones, o retrato dos teus filhos, a factura da eletricidade em atraso que devias pagar: o teu passado foi embora, a tua mulher foi-se embora, o teu emprego foi-se embora, deixaste de existir na véspera, deixaste de pensar em amanhã. (ANTUNES, 2002, p.33)

Se, para dizer da noção de tempo, o conceito deleuziano de devir é muito pertinente, também o conceito de desterritorialização5, cunhado pelo filósofo, é útil para pensar na questão do desamparo. O fragmento de crônica citado é marcado pela vivência de desterritorialização. O narrador dá mostras de que perdeu o sentimento de pertinência em relação ao mundo que o circunda, tanto na horizontalidade do seu agora, quanto na verticalidade das dimensões do 5

Para se ter uma idéia desta noção, faz-se necessário compreender que território seria uma espécie de apropriação de si mesmo, a partir de um conjunto de projetos e representações que vão desembocar em comportamentos e investimentos afetivos nos tempos e espaços sociais, culturais, estéticos e cognitivos. O território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente “em casa”. Mas o território pode se abrir, romper-se, engajando-se em linhas de fuga, levando à perda de certezas e dando lugar ao aparecimento de estranho. É isto que se chama desterritorialização. (Guattari, Rolnik, 1986).

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tempo. Não sabe quem é, quem foi, nem para onde vai. As amarras identificatórias foram embora num trem de segunda classe. O que ficou é desvanecente: uma tarde, um rio. Ou tem consistência: um pombo ou uma estátua, mas não pertence a ninguém. Nem mesmo a língua é capaz de dizer o personagem, que é então convidado a inventar outra:

inventa uma língua para dizer - não sei por exemplo - Vlkab ou ‘- tjmp (ANTUNES, 2002, p.34)

Pode-se, para efeito didático, subdividir as formas de surgimento do desamparo: as que tematizam a relação do narrador consigo, as que mostram como é difícil separar sanidade e loucura; as que tratam das relações homem/mulher marcadas pelo desencontro, as que tematizam as relações familiares – principalmente com as de linhagem paterna, as que tratam da morte e, por fim, as que têm como tema a estereotipia das relações sociais. No capítulo três será dada ênfase à temática do desamparo a partir destes tópicos.

1.2.3 – A escritura e o fora da linguagem

Inicialmente será feita uma reflexão sobre a ironia e o humor como estratégias narrativas capazes de subverter a linguagem e fazer valer o literário. Em seguida, serão feitas algumas considerações sobre a escritura e sua relação com o estranho.

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1.2.3.1 – A ironia e o humor

O uso constante da ironia e do humor revelando a perda da estabilidade dos referenciais sociais, dos ideais e das certezas sobre o próprio eu e sobre o mundo é visto aqui como uma estratégia textual. O humor é uma forma de apontar o trágico da existência. Temas como a morte, o envelhecimento, a solidão, a impossibilidade de comunicação são apresentados e suavizados pelo humor. É ele quem dá um toque de leveza ao que, usualmente, poderia produzir horror. Como afirma Candido, o humor é um ingrediente importante para dar à crônica um caráter literário, pois o humor subverte a língua, fazendo com que a palavra adquira novos sentidos. Assim, o humor, descrito como uma experiência do não saber, é uma das vias pelas quais Lobo Antunes apresenta o lado obscuro da existência. Se o riso decorrente do cômico permite uma descarga, na medida em que o eu não padece as mazelas mencionadas como vividas pelo outro, ficando assim fortalecido; na experiência de humor, o eu não se engrandece, o sujeito ri de si mesmo e a vitória se faz no campo da subversão da linguagem. Além do humor, a ironia retórica é outra estratégia utilizada por Lobo Antunes para criticar valores inconsistentes, referindo-se, particularmente, aos costumes do povo português. A ironia lida com a equivocidade, subvertendo a linguagem na medida que tem como estratégia fazer uma oposição entre enunciado e enunciação. A mensagem se apresenta pelo avesso. Em um detalhado estudo sobre a ironia, Lélia Parreira Duarte (2006) mostra que o eu ganhou um lugar na literatura a partir do romantismo e de seus pressupostos de liberdade e igualdade. Mas essa valorização gerou um paradoxo, pois, ao ver-se como um ser de desejo de absoluto, o homem se percebe frágil, dependente e transitório. Pode-se dizer que esse eu é

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descoberto como soberano e, ao mesmo tempo, como um eu em fracasso. A era moderna é o tempo da soberania e declínio do sujeito da razão; assim a ironia se presta a evidenciar, na própria estrutura narrativa, esse paradoxo, afirmando e negando, simultaneamente, a soberania do eu e do instituído. O trabalho com o humor e a ironia pode ser visto, por exemplo, na crônica “O grande homem”. Escrito em primeira pessoa, o narrador inicia o texto com a frase: “Soube que era gênio quando encontrei o romance nas livrarias, quando o retrato principiou a aparecer nos jornais, quando dei a primeira entrevista à televisão.” (ANTUNES, 1998, p.141). A autoexaltação presente na abertura da crônica já mostra que se trata, claramente, de ironia retórica, quando o narrador desdenha pelo avesso, exagerando a importância daquilo que quer depreciar. A primeira frase já propõe um pacto com o leitor, para que fique alerta e saiba que a mensagem que se quer passar é contrária ao que está enunciado: venha comigo, vou apresentar uma farsa – parece propor o autor. O humor sarcástico é dirigido, primeiramente, ao narrador, esse eu inflado de prepotência que quer brindar com o outro “a dádiva da minha presença” (ANTUNES, 1998, p.141), mas que se constata destituído de fama ou de reconhecimento pelo livro que escreveu. Como uma celebridade mundialmente conhecida afirma que “pareceu-me injusto não sair para a rua a pé, em carro descoberto, cercado por guarda-costa, de óculos ray-ban, a mostrar-me e a abençoar.” (ANTUNES, 1998, p.141) É fácil para o leitor perceber que, na verdade, o autor quer criticar a busca de prestígio que pode estar presente nos pessoas famosas. O eu tão prepotente na abertura da crônica vai-se tornando, pouco a pouco, “encolhido e humilhado” (ANTUNES, 1998, p.142), mas, ainda tentando se manter numa posição de magnânimo, o narrador afirma que “compreendi com raiva que os portugueses não me mereciam” (ANTUNES, 1998, p.143).

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Mas a crítica se estende também ao povo português, tal como o narrador, mergulhado num mundo de valores ridículos, cada um atento apenas aos momentos em que viu a si mesmo como herói: “muito ponta-pé lhe dei eu nesse cu” (ANTUNES, 1998, p.142). O autor aponta também a falta de instrução do povo português: “Escreveu um livro? As anedotas do Bocage, aposto” ( ANTUNES, 1998, p.143). Ou seja:

A comicidade, desencadeada em função dos pequenos e grandes ridículos do viver quotidiano, está recorrentemente presente nas crónicas de Lobo Antunes; um cotidiano em que, por força do procedimento de irrisão, se adivinham as rotinas de uma civilização urbana e suburbana, selva de comportamentos agressivos em que o narrador dá testemunho pessoal, sem prejuízo do cômico e dessa verdadeira pulsão do real6 que domina as crônicas. (REIS, 2004, p.29-30) (grifo nosso)

É interessante notar que esse desfazer de si, pelo avesso, acaba por ser uma espécie de exaltação, pois o narrador coloca-se acima de quem está predominantemente interessado em fazer sucesso. Sutilmente compara-se a colegas ilustres (Villon, Genet), escritores malditos, mas mundialmente reconhecidos. Ou seja, no jogo da mentira, uma afirmação presente no enunciado pode sutilmente ainda estar vigorando. Como diz Duarte (2006), a ironia também pode guardar uma ambigüidade que deixa o leitor sem saber o que afirmar sobre as intenções do autor.

1.2.3.2 – A escritura e o estranho

Finalmente, faz-se necessária uma reflexão sobre a escritura como possibilidade de transmitir vestígios do estranho. Na obra de Lobo Antunes a narrativa emerge de outras narrativas; crônicas e romances se embaralham em espirais, temas e personagens semelhantes 6

Essa expressão será objeto de reflexão no decorrer deste capítulo.

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apresentam-se de maneira reiterativa nos dois gêneros. Também de ambos pode-se extrair um tom poético de tal maneira que não é possível distinguir a fronteira entre prosa e poesia. Aqui cabe retornar ao conceito de escritura cunhado por Barthes em O grau zero da escritura (1971). Apesar de o conceito ter sofrido várias alterações ao longo de suas teorizações, o que interessa para este estudo é que, no sentido barthesiano, a noção de escritura é da ordem da enunciação. A realidade da escritura é ambígua: por um lado nasce da confrontação do escritor com a sociedade e, por outro, remete-o às fontes instrumentais de sua criação. Por isso ela está amarrada a dois objetivos aparentemente contraditórios: voltar-se para o mundo e voltar-se para si mesma. O termo escritura não constitui propriamente um conceito, mas um conjunto de traços que permite distinguir, em determinados textos, um aspecto propriamente indefinível como totalidade. Ela parte do mundo, mas constitui-se de um rearranjo, uma variação de textos anteriores, produzindo algo novo (PERRONE-MOISÉS, 1978). Por isso, ela não é função da linguagem, é justamente desfuncionalização da linguagem. “Ela força a língua a significar o que está além de suas possibilidades, além de suas funções” (PERRONE-MOISES, 1993, p.44). Barthes mostra que há dois tipos diferentes de escrita: uma que privilegia a semelhança e a presença de uma harmonia entre o escrever e o mundo, e outra que, no dizer de Costa Lima (1980), pode ser pensada como uma poética do pesadelo, em que se faz mais evidente uma ausência de correspondência entre a escrita e o mundo. Entretanto, Costa Lima nos lembra que, mesmo os textos da primeira categoria são marcados por um ponto cego, que, à semelhança do umbigo do sonho preconizado por Freud (1900), apontam para o insondável. O que se pode concluir é que o campo da teoria literária, assim como o da teoria psicanalítica, pode ser visto de duas maneiras: sob a ótica que privilegia o espaço da representação, que

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acredita que a palavra possa representar uma realidade pré-existente, ou sob outra ótica – a ótica do Real – que insiste em apontar para um mais além da representação. Tomar as crônicas como escritura, a partir da conceituação de Barthes, é enfatizar que nelas não encontramos uma representação da realidade, nem um endereçamento. O autor não pretende fazer relatos, apontar soluções, nem ensinar nada a ninguém; está muito mais ocupado com o paradoxo do que com a doxa, o estabelecido. Assim, para ler Lobo Antunes é preciso tatear no escuro. Se essa obscuridade vai-se fazendo cada vez mais presente em seus romances, também se torna progressivamente mais evidente em cada um dos três volumes de crônicas. Nessa encenação do real, o que se pode verificar é uma escritura que privilegia a enunciação. O real apresenta-se na própria tessitura lacunar e fragmentária das crônicas. Assim, a solidão na vida conjugal é mostrada na crônica “Uma sensação de para quê” em que o narrador conversa com a imagem (fantasma? fotografia?) da mulher que deixou a casa:

Não preciso que me digas nada nem que faças nada, basta que estejas aí e é já tanto. Não mudei a cor dos sofás, as cortinas continuam as mesmas, o quadro que trouxeste de solteira e eu nunca gostei (foi minha mãe quem mo deu, disseste tu, e eu calado sem acreditar) permanece ali em frente por cima do carrinho das bebidas, o nosso retrato na Foz ocupa o lugar de honra na estante, a revista de decoração que deixaste aberta antes de ires-te embora (Dez sugestões de dez decoradores portugueses para as zonas mortas de sua casa) espera na poltrona onde te sentavas sempre, jurando que com meia dose de imaginação e meia dose de bom gosto poderíamos transformar para melhor a nossa vida. (ANTUNES, 2002, p.305)

Não há uma referência explícita à solidão, ela é apresentada nos detalhes da casa, aparentemente sem importância, os quais mostram a presença da ausência da mulher, assim como os desencontros do casal e as tentativas inúteis de melhorar a relação conjugal. Os buracos não preenchidos pela relação a dois se apresentam pela revista deixada pela esposa: sugestões dos decoradores para as zonas mortas da casa. Na casa, tudo se encontra no mesmo lugar. A revista de decoração, metonimicamente, substitui a mulher em suas vãs tentativas de

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dar um jeito de transformar/decorar a vida conjugal. Aqui os objetos – coisas sem vida – falam pelas pessoas em sua falta de vitalidade e mostram, sem falar, a dor da separação e a solidão do narrador na casa inalterada. A apresentação da solidão se faz mais pela enunciação do que pelo enunciado. Períodos longos, que mal dão tempo para o leitor respirar, exalam uma angústia que é transmitida ao leitor. Além disso, parágrafos/frases entre parênteses são jogados, como que por acaso, no texto, mudando a direção da leitura. No caso dessa crônica, o primeiro parênteses refere-se ao silêncio e descrédito do narrador no que diz respeito às afirmações da mulher, a linguagem não leva a um acordo, permanecendo um desentendimento mudo entre eles. O segundo, ao apresentar o título da revista de decoração, coloca a revista esquecida no lugar de resto de uma presença que insistia em acreditar que a relação ainda seria possível – com meia dose de imaginação e meia dose de bom gosto. Várias crônicas têm como tema a própria escrita. E essa temática é, progressivamente, mais presente nos três livros de crônicas. Questões como: o que é literatura? Por que escrever? O que busco com meus livros? São reincidentes nas crônicas, várias delas dedicadas, exclusivamente, a esse tema. Algumas delas têm um tom poético, em outras predomina uma linguagem ensaística, mostrando, tanto pela via dos enunciados quanto das enunciações – principalmente as mais poéticas – que o artista está em busca de algo que o ultrapasse, ao mesmo tempo presente nos pequenos e aparentemente insignificantes detalhes da existência, mas apontando para algo que se encontra mais além. É isto que se pode encontrar, por exemplo, em “Receita para me lerem”. Essa crônica, a começar pelo título, tem a marca da ironia, pois a receita é jogar fora a receita; é um mandato impossível de ser cumprido. O narrador diz que é um erro alguém afirmar que teria

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lido um livro seu, pois eles não são para ser lidos7. Aponta uma outra alternativa, diz preferir contaminar o leitor, por isso seus romances deveriam ser apanhados, “como se apanha uma doença” (ANTUNES, 2002, p.109), exigem mais que uma compreensão intelectual, precisam ser vividos corporalmente. Diz também ser impossível classificar seus textos. São chamados romances assim como poderiam ser classificados de poemas, ou até mesmo de visões. Para ser contaminado por eles é preciso renunciar a uma chave interpretativa e ver as palavras como coisas vivas, “signos de sentimentos íntimos” (ANTUNES, 2002, p.109)8. A história, os personagens, enfim os enunciados não importam, serviriam para apontar algo que está além, para conduzir ao “fundo avesso da alma” (ANTUNES, 2002, p.109), ao “negrume do inconsciente” (ANTUNES, 2002, p.109). Por isso, os dramas pessoais, as críticas sociais seriam aspectos mais parcelares e menos importante dos livros. O narrador afirma que não quer ensinar nada em termos políticos ou antropológicos, pois “o mais que em geral recebemos da vida é um conhecimento que chega demasiado tarde” (ANTUNES, 2002, p.110). A verdade buscada é de outra ordem, até porque “não existem nas minhas obras sentidos exclusivos nem conclusões definidas.” (ANTUNES, 2002, p.110). Seus textos seriam símbolos materiais de conclusões fantásticas (estariam, ao mesmo tempo, no céu e no rés do chão da linguagem?) em oposição à nossa realidade truncada. O narrador convida o leitor a se deixar levar por um aparente desleixo e enveredar pelo pântano da estranheza, “ao assombrado vai-vem de ondas que, a pouco e pouco os levarão ao encontro da treva fatal.” (ANTUNES, 2002, p.110). Faz-se necessária a perda das certezas, para que algo de novo possa nascer. É preciso que as certezas do sujeito cartesiano caiam por terra, que

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Coincidentemente é isto que diz também Lacan (1985), a respeito de seus escritos. Retomando as considerações de Pierce sobre o signo lingüístico, parece que aqui o signo seria como um índice (PIERCE, 1977), já traria em si algo do referente, é o sentimento, em contraposição à noção de significante em que a representação substitui o referente.

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o leitor perca o sentido que de fato não possui, para que outra ordem nasça desse choque. A verdade que se encontra nos seus textos é como a de um sonho, com claridades e sombras. O leitor deve ser pego pelo texto, como se pega uma doença, ser contaminado por ele. “Exijo que o leitor tenha uma voz, entre as vozes do romance” (ANTUNES, 2002, p.111), de onde deverá sair, não rico, nem pleno, mas, pelo contrário, “carregado de despojos” (ANTUNES, 2002, p.110), de restos. Lembra que suas narrativas não levam a um lugar seguro, porque não existe propriamente uma narrativa, “mas apenas largos círculos concêntricos que se estreitam e aparentemente nos sufocam” (ANTUNES, 2002, p.111). Fechado o livro, o leitor é convidado a convalescer, pois uma vez contaminado, ele também se torna portador da peste – deve assentar-se no meio dos demônios e anjos da terra. As figuras que povoam os romances carecem de relevo porque refletem narrador e leitor, “até nenhum de nós saber qual dos dois somos.” (ANTUNES, 2002, p.111). Com os romances, o leitor não terá acesso a uma imagem coerente de si mesmo ou a um saber iniciático. A leitura traz consigo uma vivência de perda. Por isso os personagens não possuem relevo, são ao mesmo tempo ninguém e todo o mundo. O livro ideal seria um espelho vazio, que serviria, não para que o leitor se encontre, mas para que ninguém – narrador ou leitor – possa saber quem é. Invertendo a proposta de Platão, propõe que se regresse desses espelhos como quem regressa da caverna do que era e afirma que olhar-se no espelho é dar-se conta, não da luz esclarecedora da verdade, mas da sombra, e compreender que ela é inerente à existência. “É o que se pode, no melhor dos casos, dar nexo à vida.” (ANTUNES, 2002, p.111). Pode-se perceber aqui a busca do que Blanchot vai chamar de “a obra”, ou seja, esse esforço reiterativo do escritor de dar conta de apreender uma verdade que sempre escapa, tanto no que diz respeito à própria escrita quanto a si mesmo. A escritura de si e do texto, ou de si no texto é, inevitavelmente, uma escrita de fragmentos. O escritor é convocado, diz

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Blanchot “a desfazer o discurso no qual, por mais infelizes que nos acreditemos, mantemonos, nós que deles dispomos, confortavelmente instalados.” (BLANCHOT, 2001, p.9). Assim, a escrita literária estaria fora do discurso ou, em outros termos, fora da linguagem. Essas peculiaridades levam a pensar na importância de se ampliar o lugar e a importância da crônica propostos pelo próprio autor. Nessas crônicas, a narração atravessa a realidade cotidiana de maneira marginal, com o objetivo de denunciar seus vazios. A reconfiguração do tempo, da memória e dos valores levam a pensar que nelas se encontra não apenas um reflexo de uma realidade que o autor pudesse ter o objetivo de retratar; como afirma Reis (2004), trata-se de um passo além: nas crônicas o narrador dá testemunho da pulsão do real. O que isso significa? Dar testemunho diz respeito a algo mais vivo, de acordo com o Novo dicionário Aurélio (1986), está relacionado a confirmar, presenciar, revelar. O que as crônicas testemunham é da ordem da pulsão do real. Abrindo um parêntese, é necessário esclarecer alguns termos psicanalíticos que serão fundamentais para o desenvolvimento desta tese. É do conhecimento de todos que o termo pulsão é freudiano e que o conceito de real foi trabalhado reiteradamente por Lacan. Ou seja, a teoria psicanalítica tem uma contribuição significativa para desenvolver a leitura que aqui é feita das crônicas de Lobo Antunes. Pulsão9 é um conceito que faz parte das concepções metapsicológicas de Freud e caracteriza-se por ser o que coloca em movimento constante o aparelho psíquico. Sua estrutura é a da banda de Moebius10, uma vez que está, ao mesmo tempo, dentro e fora do

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Pode-se dizer que a pulsão pertenceria ao registro da representação, mas não inteiramente, uma vez que a fonte, um de seus componentes, se encontra no corpo – fora do aparelho psíquico – embora ela só adquira existência depois de representada. Essa representação se faz a partir de uma marca psíquica que dá origem a imagens e a palavras. A pulsão seria responsável por colocar o aparelho psíquico em constante movimento, uma vez que qualquer destino para livrar-se da tensão produzida será, inevitavelmente, uma solução precária, pois entre o corpo e o psíquico há um inassimilável que sempre deixa um resto de tensão. (FREUD, 1915) 10 No século XIX, Moebius criou um arranjo – uma fita em que as pontas são atadas de maneira retorcida –para referir a superfícies tridimencionais, com um só lado e um só componente de contorno, não são inteiramente interiores nem exteriores. De acordo com Lafont (1996), a imagem da banda de Moebius foi utilizada várias vezes por Lacan para mostrar que, no que diz respeito ao psíquico, não podemos fazer distinções polares de dentro ou fora, uma superfície leva necessariamente a outra.

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aparelho psíquico, sendo, portanto, um conceito limite. Fazendo um paralelo, pode-se dizer que pulsão e linguagem têm uma estrutura de funcionamento parecidas pois, estando ambas atreladas à questão da representação e de sua insuficiência, palavra e pulsão deixam algo de fora que insiste e alimenta outras tentativas de resgate do que foi perdido. E o real? Lacan tem contribuições significativas para o estudo do real na literatura, à medida que trabalha, exaustivamente, o entrelaçamento dos registros real, imaginário e simbólico em diferentes contextos, entre eles, o texto literário. O simbólico é veiculado pela palavra e determina os seus limites, fora dos quais há uma impossibilidade; ele se faz presente pela via da função paterna. Já o imaginário diz respeito a uma forma de captar o mundo através de imagens. Essa imagem, moldada a partir do espelho do olhar do Outro, produz uma sensação de completude, que, apesar de fundamental para a estruturação do aparelho psíquico, é da ordem da ilusão, pois entre essa imagem e a realidade há um hiato. É a esse hiato que se refere o registro do real. Ele diz respeito ao que escapa ao simbólico; resto que se torna causa, pois está sempre impulsionando o simbólico. O real tem também o poder de fazer com que o discurso se distenda e se estenda além das possibilidades de significação. Além de causa do simbólico e consequentemente da escrita, ele também pode emergir num certo tipo de escritura. É interessante precisar que, no percurso de Lacan, o real, apesar de estar presente em seus textos desde 195311, só adquire o status de registro, como os outros dois, no seminário de 1973. Na lição de 11 de dezembro Lacan diz:

Até o presente só lhes falei do imaginário e do simbólico, mas meu discurso tende a lhes mostrar que essas duas dimensões se completem pela do Real. Em outros termos é preciso que haja três delas. Só há uma coisa a dizer no momento. Desse Real só posso dizer que é data de seu batismo. Eu te batizo Real, a ti como terceira dimensão. Já fiz isso há muito tempo, foi por aí que comecei meu ensino. E acrescentei no meu foro íntimo: Eu te batizo Real porque se tu não existisses, seria preciso inventar-te. (LACAN, 1974) 11

No texto “O simbólico, o imaginário e o real” de 1953, o termo real se apresenta pela primeira vez, mas como equivalente à noção de realidade.(LACAN, 2005)

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Nessa perspectiva, portanto, o real estaria associado ao que não pode ser apreendido pela representação pulsional, ponto de furo do aparelho psíquico, fundamental para seu funcionamento. Ele não pode ser simbolizado pela palavra, nem integrado ao plano narcísico através da imagem. Por ser inapreensível, ele produz um movimento incessante, por isso, se não existisse, seria preciso inventá-lo. A partir de 1920, ao inventar o conceito de pulsão de morte, Freud parece se referir a uma noção próxima a do real lacaniano, embora não tenha usado essa expressão. O conceito está explicitado em “Além do principio do prazer” (FREUD, 1920), escrito, ao que parece, conjuntamente ao ensaio sobre o Estranho, uma vez que um texto remete inevitavelmente ao outro. Este momento é considerado como sendo o de uma torção das concepções psicanalíticas que, ao incluir a pulsão de morte, levam a outra concepção de clínica e também, o que interessa no desenvolvimento desta tese, de literatura. Fechando o parêntese e retornando às colocações de Reis, quando o crítico salienta que nas crônicas de Lobo Antunes o narrador dá testemunho da pulsão do real, o que se pode pensar? Estaria ele se referindo ao real como causa, motor da escritura, na medida em que a pulsão pede trabalho psíquico incessantemente? Ou será que ele supõe que, na escritura das crônicas, o real, apesar de indizível, pode se fazer presente? Reis estaria em defesa de que, nas crônicas de Lobo Antunes, a palavra escrita pode expandir os limites de representação da linguagem, trazendo um real vivo para o texto? Ambas as possibilidades são pertinentes. E a última hipótese é condizente com a leitura feita acima da crônica “Receita para me lerem”, pois o real se transmite na palavra tida como “signo de sentimentos íntimos” (ANTUNES, 2002, p.109), “fundo do avesso da alma” (ANTUNES, 2002, p.109); mostra-se pela via do despojo, da sombra – aquela que pode dar nexo à vida. A verdade revelada pelo real não é da ordem do saber, mas mesmo assim é capaz

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de contaminar o leitor como uma doença, tocá-lo naquilo que ele tem de mais íntimo e ao mesmo tempo de mais estrangeiro. Como diz Lacan, tocá-lo na extimidade, pois o que temos de mais íntimo, não nos pertence.

1.3 – O realismo e a escritura do real

Situando historicamente, pode-se dizer que o movimento realista surgiu no século XIX e tinha como objetivo retratar a realidade factual da maneira mais fiel possível, em oposição à noção de literatura veiculada pelo Romantismo. Quando as discussões filosóficas do século XX tornaram relativa a representação como única forma de apreensão da realidade, vislumbrou-se a possibilidade de haver algo capaz de atravessar o campo da linguagem, mas que estaria além da palavra. Assim, diferente de uma literatura realista, a escritura do real seria aquela capaz de transmitir/encenar, através das marcas deixadas no texto, em vez de representar/retratar pela palavra. Barthes escreve sobre o efeito de real tido como característica da literatura contemporânea que procede da intenção de “alterar a natureza tripartida do signo para fazer da notação o simples encontro do objeto e de sua expressão” (BARTHES, 1988a, p.165). Esses textos literários padecem, por isso, de desestabilidade. Têm a fragmentação como tema e são eles mesmos marcados por ela. Neles se encena o real, já que apontam justamente para algo que não pode ser apreendido pela palavra, mas não prescindem dela para se apresentar. O real se apresenta, ainda de acordo com Barthes, por detalhes aparentemente insignificantes no tecido narrativo. Esses tecidos irredutíveis denotam o real concreto. Assim, “a relação daquilo que é (ou foi) aparece como uma resistência ao sentido” (BARTHES,

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1988a, p.162). O pormenor concreto é constituído “pela colusão direta de um referente e de um significante: o significado fica expulso do signo e, com ele, evidentemente, a possibilidade de desenvolver-se uma forma de significado, isto é, na realidade, a própria estrutura da narrativa” (BARTHES, 1988a, p.164). Essa característica, evidentemente, não se restringe à obra de Lobo Antunes. Parte significativa da literatura contemporânea traz consigo a marca do estilhaçamento e insiste em apresentar, através das lacunas da escrita, algo que vai além da função de representar uma dada realidade. De acordo com recentes pesquisas sobre o tema da representação no campo da literatura, feitas por Alfredo Bosi (2002), os textos literários publicados recentemente vêm apontando para um “novo real”, na medida em que não se trata de um realismo que pretende retratar uma realidade pré-existente, mas tornar esse real presente no texto literário, com toda a força em termos de afetos (termo deleuziano cunhado para tratar de algo que é transmitido pela via dos sentidos e não da representação), para que este real impossível possa se escrever. Para isso, são criados efeitos de realidade com transgressão dos limites representativos do realismo histórico, através do aspecto performático da linguagem literária, destacando-se o efeito afetivo em lugar da questão representativa. Trata-se de textos que não se colam à realidade como mero espelho, mas pretendem ser um profundo estudo das relações humanas, cumprindo o papel de colocar em cena questões cruciais dos viventes, criando a possibilidade de refletir sobre essas relações. A realidade assim “se faz presente a partir de uma tensão interna que a faz resistente enquanto escrita.” (BOSI, 2000, p.129). Oposta à dimensão do realismo que defende a escrita como reflexo da realidade, essa forma de escritura não constitui uma variante literária de uma rotina social. “Seu papel revolucionário seria cavar um vazio nessa espessa materialidade, vazio jamais preenchido pelo discurso especular das convenções ditas realistas” (BOSI, 2000, p.134). A escritura resgata não só o que foi dito, mas principalmente o que é silêncio. Em outras palavras, é uma

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escrita que usa a palavra para forçá-la a dizer aquilo que está além dela. É uma escritura que privilegia os restos, no sentido daquilo que não tem um lugar no simbólico, seja em que nível for. Nas crônicas de Lobo Antunes, o narrador de “A confissão do trapeiro” afirma que não faz outra coisa na vida a não ser meter o nariz naquilo que os outros jogam no lixo,

no que abandonam, no que não lhes interessa, e regressar daí com toda espécie de despojos, restos, fragmentos, emoções truncadas, sombras baças, inutilidades minúsculas, eu às voltas com tudo isso, virando, revirando, guardando (um caco de gargalo entre duas pedras do passeio, por exemplo). (ANTUNES, 2006, p.133)

É como alguém que se ocupa dos restos que o narrador se define, seu trabalho é com aquilo que o homem não quer saber, por trazer desprazer ou por ser da ordem do indizível. Por isso a leitura desses textos desestabiliza: somos pegos numa teia de paradoxos e deparamos, nós também, com as sobras/sombras da existência. Pode-se dizer que esse tipo de narrativa revela uma outra vida que “abraça e transcende a vida real... é nesse horizonte que o espaço da literatura, considerado em geral como o lugar da fantasia, pode ser o lugar da verdade mais exigente” (BOSI, 2000, p.135). O espaço da crônica é particularmente propício para este abraçar e para: acharmo-nos ao mesmo tempo no interior e por fora da intensidade inicial, ou seja do conflito entre o cotidiano e o esmagamento cósmico, atemorizados pelo horror e a alegria primitivas, vagando sem cálculo nem sentido pelo ermo dos dias. (ANTUNES, 2006, p.134)

Se nos restos encontra-se algo que produz horror, lá também a alegria primitiva tem morada. Encontram-se no lixo belezas inesperadas, “brilhos, cintilações, serventias” (ANTUNES, 2006, p.133). Verdades surpreendentes podem estar no meio do que parece não ter valor. Mais uma vez aqui a estrutura moebiana apresenta-se nesse espaço a um só tempo interior e exterior, situado entre o cotidiano e o cósmico, entre o horror e a alegria.

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Scholhammer (2000), seguindo uma linha de raciocínio semelhante, vai afirmar que, quando a literatura se depara com os limites da representação, “a batalha ocorre dentro da linguagem” (SCHOLLHAMMER, 2000, p.245). Nesse embate surge uma redefinição do que é real, na medida em que o texto cria efeitos de real. Nessa perspectiva, a literatura se torna não só um meio de representar a realidade, mas de criar uma realidade perceptiva. Essa nova literatura pode fazer surgir um efeito sensível que, não necessariamente, liga-se ao conteúdo da mensagem, mas indica “um limite desse conteúdo enquanto sentido e aponta para um além dele, para o seu não-sentido. Nesse limite a linguagem se confronta com o seu avesso, com o inominável ou o indizível” (SCHOLLHAMMER, 2000, p.246-247). Retornando à crônica de Lobo Antunes recém-mencionada, ao defender que a sua escrita se faz a partir dos restos, lá onde a linguagem faz limite, o narrador termina assim o texto:

Chegando à varanda é fácil dar por mim, parado quase à esquina, a remexer sedimentos e sedimentos (restos, emoções truncadas, sombras baças) até vos tocar e me tocar no por dentro de nós, onde aflitamente moramos... (ANTUNES, 2006, p. 135)

O que o escritor pretende é tocar o leitor lá onde mora o resto, onde as palavras não traduzem as emoções truncadas, mostrando o estranho que habita a nossa morada e constitui parte integrante do nosso viver.

1.4 – Freud, o estranho e a literatura

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Freud, em diversos momentos em sua obra, retoma o tema da literatura, ora para ilustrar a teoria psicanalítica, ora para se debruçar sobre o que seria o fazer literário. No texto “Escritores criativos e devaneios” (1908), apresenta uma visão romântica do texto literário e do escritor. Este é considerado alguém capaz de transformar a realidade, suavizando-a, de modo a produzir uma sensação de apaziguamento. Já em 1919, no ensaio “O estranho”, após teorizar sobre algo que se encontra além do princípio do prazer e carece de representação, o objeto da discussão diz respeito a obras literárias que produzem uma sensação de estranheza que não é regida pelo princípio do prazer, pois não produz descarga de tensão e, portanto, não traz apaziguamento. A pergunta que instiga Freud é: qual a natureza do estranho? Como ele se apresenta na literatura de ficção? Afirma que o estranho está associado ao assustador e que a literatura tradicionalmente costuma ocupar-se do que é belo, atraente, negligenciando o que causa repulsa. Inicia sua pesquisa pelo dicionário, deslizando sobre os diferentes sentidos da palavra alemã Heimlich – familiar, e seu oposto, Unheimlich – estranho. Nos desdobramentos dos possíveis sentidos, Freud demonstra que um dos sentidos da palavra Heimlich é idêntico ao seu oposto, Unheimlich, pois Heimlich significa, ao mesmo tempo, o que é familiar e agradável, assim como o que está oculto e se mantém fora da vista; enquanto Unheimlich é o que deveria ter permanecido secreto, mas veio à luz. O sentido se desenvolve em direção à ambivalência, até coincidir com seu oposto, para concluir que o estranho faz parte da categoria do assustador que remete ao que é conhecido. Pergunta-se então: em que circunstâncias o familiar pode tornar-se assustador? A conclusão é de que o estranho não pertence à casa e, no entanto, mora aí, e pode ser secretamente familiar. Freud esclarece em seguida que o estranho na literatura abrange algo mais, na medida em que a fantasia tem por característica não se submeter ao teste de realidade. O escritor pode escrever de forma a imitar a realidade, ou afastar-se dela o quanto quiser. Nos contos de fadas,

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por exemplo, o escritor se afasta da realidade sem que isso cause estranheza. Portanto, não é o simples afastamento da realidade que está associado ao estranho. A sensação de estranheza é transmitida quando o escrito se move na realidade comum, criando condições para produzir afetos que ocorrem na vida real, podendo até multiplicar os efeitos de estranheza. Segundo Freud, o escritor nos ilude quando promete dar-nos a pura verdade e no final excede essa verdade. O excesso vai abrir espaço para o surgimento do estranho. A fantasia – o simulacro – revela uma verdade a partir do excesso, uma verdade que se encontra fora do campo do saber. Assim, no fingimento, na mentira da literatura, uma outra verdade pode ter voz. Ana Maria Portugal (2006), em O vidro da palavra, fazendo um cuidadoso estudo sobre esse ensaio de Freud, conclui que o estranho é um conceito limite, espécie de litoral que tangencia tanto a literatura quanto a psicanálise. Mostra que essa tangência se faz pela via do conjunto vazio, está ao mesmo tempo dentro e fora do campo da linguagem. Esta atopia se inicia pelo estudo semântico feito por Freud sobre os termos Heimlich – Unheimlich, mostrando que o estranho e o familiar em um momento coincidem em termos de sentido. A sinonímia do estranho e seus derivados traz a idéia de um afastamento e, simultaneamente, uma aproximação devido a afetos de censura, de desconfiança, de não conhecimento, de admiração, de mistério, como se fosse suspeitamente familiar. O termo familiar sofre uma torção para chegar ao que é assustador e angustiante. Aquilo que é familiar, de tão íntimo, chega ao secreto, por isso o estranho desperta o sujeito do sonho alienado da casa, do familiar, marcando algo fora, com o qual o sujeito tem que se haver. Portugal (2006) demonstra que o estranho diz respeito à psicanálise, pois consiste em reproduzir, “em redoar esta metade sem par da qual subsiste o sujeito, no ponto em que o inconsciente não se estrutura como uma linguagem” (PORTUGAL, 2006, p.161). E afirma que a escrita do Unheimlich pertence também a uma literatura que aponta para uma “certa

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estética do deserto, do exílio, da solidão e do silêncio, (...) que toca a experiência do real, na implicação de cada um em relação ao tempo sem memória da constituição do ser na linguagem” (PORTUGAL, 2006, p.162). Ou seja, ao tratar do estranho, Freud está falando de formas de apresentação do real, tanto na literatura quanto na clínica. Há um litoral entre a psicanálise e a literatura onde o estranho/real insiste e, de certo modo, se escreve. Os contos analisados por Freud em seu ensaio podem dar, enganosamente, a impressão de que o estranho estaria necessariamente atrelado à questão do fantástico e do terror. Entretanto, ao desenvolver seu raciocínio, o pai da psicanálise torna relativa essa ligação, pois constata que nem sempre o fantástico está relacionado à estranheza e defende o estranho como associado aos efeitos que são produzidos no leitor, principalmente quando algo inesperado é introduzido no cotidiano, ou seja, quando o Unheimlich se imiscui no Heimlich. Para que o estranho se evidencie, os escritores utilizam a via do duplo, da repetição, da força do olhar, da loucura e do nonsense. Na literatura, o estranho amplia o conceito de estética, que sai do campo do belo para incluir também o assustador e o angustiante. “É o anúncio do real, fazendo com que a psicanálise suponha para o desejo humano um princípio mais além do principio do prazer.” (PORTUGAL, 2006, p.18). De acordo com a autora, quando o escritor produz a sensação de estranheza, o leitor experimenta uma divisão externa/interna que pode ser deslocada para o autor, ou produzir efeitos de inconsciente. Em outras palavras, o leitor se vê invadido por algo que é estranho ao eu. O escritor da trama decide pela estranheza quando é tocado em pontos nos quais “a própria estrutura linguageira mostra seus buracos.” (PORTUGAL, 2006, p.47). É nesses pontos de falha que o imaginário do leitor é convocado a acompanhá-lo. Nessa

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realidade fingida da ficção, o afeto que nos causaria divisão é elaborado com a participação da fantasia12 e pode interpelar o real de diferentes maneiras. Ora, um espaço rico para fazer esse jogo é o da crônica, justamente por ter um estatuto ambíguo: se usualmente é tida como o lugar do familiar, pode capturar o leitor para “um tipo diferente de mergulho no real.” (SATO, 2002, p.34). Lobo Antunes é capaz de brincar com essas noções, subvertendo o cotidiano e trazendo o surpreendente. Para isso, utiliza todos os elementos apontados por Freud como indicadores da presença do estranho: - a repetição de relatos, particularmente ligados à infância, que retornam de maneira fantasmática, em que o tempo faz um movimento de ritornelo, indo e voltando, trazendo algo de novo ao velho, ou modificando o novo a partir do velho; - na incidência do duplo, mostrado de maneira reiterada por um narrador que se olha no espelho e não se reconhece; - na força do olhar que irá se mostrar também pela via do espelho que não apenas reflete, mas também olha; - na loucura e no nonsense que vão-se apresentar na sensação de divisão do eu e de desconhecimento de si mesmo descritas do ponto de vista do próprio narrador; e também ao referir-se a pacientes que habitariam o hospital psiquiátrico; assim como na estereotipia dos costumes sociais.

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De acordo com o Vocabulário de Psicanálise de Laplanche e Pontalis (1985) a palavra Phantasie em alemão é ambígua, designando ao mesmo tempo a atividade criadora e suas produções. A extensão do termo deixa imprecisa a sua situação tópica, o lugar psíquico da formação considerada. Isto teria levado, nas traduções, em nome da precisão, ao desmembramento em mais de um termo, para distinguir diferentes tipos de produções imaginárias. Por exemplo, em francês encontramos o termo phantasme para se referir à fantasia inconsciente, e reve eveillé para se referir ao devaneio. Entretanto, Laplanche e Pontalis consideram que, apesar de realmente Freud se referir a diferentes níveis de fantasia em sua obra, ele não parece interessado em distingui-los, antes, está mais propenso a insistir nas ligações entre esses diversos aspectos. A fantasia seria um ponto privilegiado onde se poderia apreender ao vivo o processo de passagem entre diversos lugares psíquicos, o que evidencia o fato da fantasia não ter um lugar psíquico específico, transitando do inconsciente para o consciente. Com isso, o papel da fantasia na criação literária ganha um novo estatuto, não podendo ser reduzido a uma simples fuga da realidade. Esta consideração psicanalítica sobre a fantasia aproxima-se das teorizações de Iser, no que diz respeito ao fictício, como se será vista mais adiante.

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Para Freud, o estranho também está associado à incidência da castração13 vista como uma experiência de desamparo que marca um limite inerente à existência. De acordo com Portugal (2006), quando, na literatura, o estranho se associa ao desamparo, encontramos textos em que paira uma atmosfera de vazio e de deserto que remete à solidão, ao escuro, à descontinuidade. Nesse ponto, afirma a autora, o Unheimlich toca o real não inscrito. Nas crônicas de Lobo Antunes evidencia-se um cotidiano rotineiramente vazio e solitário, em que os narradores se apresentam desencontrados nas relações que são tidas como íntimas, mas que são vividas com estranheza, assim como nas relações sociais que ocorrem em círculos mais amplos. Evidencia-se, por fim, na própria escritura que resulta em textos fraturados que, ajudados pela ironia e o humor, desestabilizam as conquistas do saber, destituem os valores instituídos e criam, pela via do texto, uma outra noção de real em substituição à de realidade, assim como outra noção de verdade em disjunção com a de saber. O conceito de estranho cunhado por Freud pode ser relacionado com as idéias de Deleuze a respeito da literatura. Esse filósofo toma o estranho14, não como uma temática, mas como uma especificidade do texto literário e da arte de um modo geral. Ele acredita que, na arte, o estranho habita o familiar, constituindo uma passagem do território à desterritorialização. “A arte conjuga de todas as maneiras esses dois elementos vivos: a casa e o universo, o Heimilich e o Unheimilich, o território e a desterritorialização.” (DELEUZE, GUATTARI, 1992, p.240). A contribuição de Deleuze é de fundamental importância na

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Vivida inicialmente na infância, mas reativada na vida adulta, a experiência de castração mostra que há limites para as possibilidades pulsionais, mais estreitos que as asas do desejo; este sim é ilimitado, uma vez que não pode ser circunscrito por nenhuma representação. Freud (1927a) apresenta, mais tarde, uma outra dimensão da castração, imaginariamente percebida com a ausência do falo materno, mas que indica algo muito mais amplo: a castração do Outro, ou seja, a falha no simbólico que, por não ter as respostas que esperamos, atira-nos na vivência de desamparo. 14 Vale esclarecer que o estranhamento - tomado como possibilidade da linguagem se desviar e apresentar novos sentidos – foi considerado, a partir dos formalistas russos, um elemento básico para se pensar a produção literária. Entretanto, os formalistas tomaram o estranhamento como um procedimento em relação à língua, por isso generalizaram a presença do estranhamento como sendo inerente à definição de literatura, pois ela é que permite esse deslizamento de significantes capaz de criar novos sentidos. O estranho para Deleuze, assim como para Freud, mesmo quando diz respeito à literatura, não cabe em qualquer produção literária, refere-se a uma escritura mais específica. (PORTUGAL, 2006)

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medida em que o filósofo está radicalmente comprometido com a dimensão da invenção e, no decorrer de sua vida, por vários momentos, debruçou-se sobre a especificidade da produção artística, desenvolvendo vários conceitos para lidar com esse tema. Em O que é filosofia (DELEUZE, GUATTARI, 1992), afirma que o artista, entre eles o escritor, excede os estados perceptivos e as passagens afetivas do vivido, acessando a um jamais vivido. Trata-se de liberar a vida lá onde ela é prisioneira. “O escritor serve-se das palavras, mas criando uma sintaxe que faz gaguejar a língua corrente” (DELEUZE, GUATTARI, 1992, p.228). Ele sempre se coloca como um estrangeiro diante da língua natal. Talvez seja possível concluir que Deleuze só considere arte um certo tipo de produção, essa que faz vacilar o saber e, em seus vazios, dê lugar ao inusitado. Também quando Lacan (2003) cria o neologismo lituraterra para se referir à criação literária, podemos concluir que não é a um texto literário qualquer que ele se refere. Diz, ao contrário, que a literatura, a das belas letras, não lhe interessa, mas sim uma produção particular, essa que faz sulcos na linguagem. O campo da letra15 se marca por um litoral que separa universos distintos – terra e mar; simbólico e real – que não são complementares, mas se tangenciam. E o encontro entre esses universos se dá sob a força da resistência, produzindo-se na heterogeneidade. A letra faz sulcos no simbólico, rasga-o e introduz outras possibilidades para a escrita. As ponderações da psicanálise e da filosofia sobre literatura são interessantes porque ajudam a compreender que as crônicas – espaço atribuído usualmente ao familiar – podem também dar lugar ao surgimento do estranho, visto que o familiar e o estranho não se

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Embora o conceito de letra por si só tenha uma complexidade suficiente para ser tema de uma tese, é importante que se possa contextualizar esta noção. No “O Seminário sobre a carta roubada”, publicado nos Escritos (1998), Lacan usa o conceito de letra para afirmar a hegemonia do simbólico, a determinação do sujeito pelo campo do Outro. Portanto, nessa primeira definição, é na dimensão simbólica que o conceito de letra aparece enfatizado nesse momento. À medida que Lacan caminha em sua teorização, a concepção de letra vai ter um vínculo cada vez maior com o real, distanciando-se da noção de significante, a ponto de criar o termo lituraterra para referir-se a uma literatura em que a letra se faz presente a partir de buracos/falhas do simbólico.(LACAN, 1971, inédito)

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excluem, um não destitui o outro, pelo contrário, a escrita do cotidiano pode ganhar outras dimensões, ultrapassar limites. Nessa ultrapassagem do vivido, das marcas do biográfico, é que se chega a um jamais vivido.

1.5 – A literatura, o real e o imaginário

Retomando as considerações psicanalíticas sobre a função da imaginação vista como uma forma de fazer frente ao real, Perrone-Moisés (1990) lembra que fazer frente não significa, necessariamente, tampar esse real; às vezes ela tem o poder de evocá-lo. Assim, o que se encontra em Lacan é que somente o recurso à escritura pode sustentar a incompletude; este lugar da falta de um significante que não deve ser procurado em lugar nenhum, pois sua ausência faz parte do jogo. A incompletude apóia-se, decisivamente, na escritura porque ela permite expandir seus elementos e possibilitando o surgimento de algo que vai além do sentido veiculado pela palavra. E na medida em que evoca o real, a literatura pode-se tornar uma forma de verdade, uma verdade que não pode ser vista a olho nu e que é captada pela rede da linguagem. É bom lembrar que rede é um tecido constituído de linhas e buracos, como pode ser observado no texto de Clarice:

Escrever é um modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Uma vez que se pescou a entrelinha, podia-se com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não-palavra, ao morder a isca, incorporou-a. (LISPECTOR, 1999, p.385)

A escritura afirma-se como indescritível para qualquer ciência particular, talvez por isso ela se encontre presente nas considerações de autores de campos diversos: psicanálise, filosofia, crítica literária, como vem sendo apresentado neste trabalho. A escritura funciona

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como questionamento das ciências estabelecidas sobre as noções de sujeito e de discurso, na medida em que arruína o sujeito idealista e o discurso logocêntrico. O texto é o lugar de uma perda, de um fading do sujeito. Também, não pode prestar-se a uma descrição sistemática já que é a subversão de toda sistemática. Outro aspecto de fundamental importância a ser considerado é que a escritura não determina nem revela um ser próprio, mas produz um sujeito em permanente crise e em permanente mutação. Como diz Castello Branco, “a escrita poderia se equivaler a um desaparecimento do sujeito: aí onde não se está, eis a escritura. E, no entanto talvez seja a escrita em sua qualidade material de traço a única evidência de que ali houve um sujeito” (CASTELLO BRANCO,1997, p.12). Tais concepções mostram a influência da concepção lacaniana de sujeito, em que ele é concebido como o intervalo que se interpõe entre um significante e outro significante. Ele é o que se desvanece, uma vez que não é nenhum dos significantes que o circunscrevem, tampouco os dois juntos. Trata-se de um efeito de sentido, mas o sentido em jogo não se fixa em determinado significado, pois é um sentido que se desloca e se desfaz. Segundo Sergio Laia : o sujeito literalmente se inter-cala entre dois significantes, não só porque ele é o que se interpõe entre um e outro, mas sobretudo porque o efeito de sentido que ele encarna – ao estar sempre se escapando da fixação em um significado – introduz no encadeamento ruidoso dos significantes uma zona de silêncio. Por isso a letra que designa o sujeito é marcada com uma barra. (LAIA, 1997, p.139-140)

Assim como faz Clarice em sua escritura, Lobo Antunes também usa palavras pescadoras. Na crônica “O gordo e o infinito” a relação da escrita com o vazio, mais que tematizada, é mostrada. A crônica se inicia com a frase: “há mais de uma hora à procura de uma idéia para esta crônica: não tenho nenhuma” (ANTUNES, 2002, p.93). A partir daí, a crônica flui, como num processo de associação livre e o restante do parágrafo apresenta a dispersão de idéias: passos no corredor, barulho de automóveis, vozes. O movimento de por e

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tirar os óculos e o trabalho de preencher os vazios das letras – matéria prima da escrita – e dos números. Junto a esses vazios, há aquele deixado pelo dente que quebrou. O dente quebrado remete ao dentista, aquele que aconselha a cuspir, quando se está de babete no pescoço. O processo de associação continua a deslizar e o babador usado no dentista traz algo da infância. Assim, compara o ato de cuspir, tão ridículo quando se está no dentista, com o ato de cuspir na infância, quando cuspia lindamente. O cuspe era considerado poderoso e causava inveja na turma (Várias crônicas referem-se ao cuspir, metáfora de não aceitação do que lhe é imposto). O cuspe leva ao “gordo”, colega de turma que era primeiro aluno, mas não sabia cuspir. O gordo exibia seus conhecimentos e afirmava que as paralelas nunca se encontravam. O professor corrigia e dizia que elas se encontravam no infinito. Para o narrador elas não se encontravam porque tinham mais o que fazer, referindo-se a sua falta de interesse pelo que era ensinado na escola. O símbolo do infinito é mostrado como frágil, um oito que não tem força nem para se manter de pé, apontando a fragilidade inerente à existência. Em seguida a crônica ganha um tom sarcástico, desdobra-se no tempo, passado e presente se fundem. O narrador fala de um encontro com o gordo – que pelo peso corpóreo encarna o excesso do instituído – em um restaurante em companhia de outros gordos. De gravata e telemóvel – símbolos do poder –, prontos a dar solução a qualquer problema de fuso horário que o professor lhes perguntasse durante o almoço. O gordo, cheio de certezas, “deixava cair frases definitivas para sua assembléia de gordos deferentes” (ANTUNES, 2002, p.94). Enquanto o narrador com a língua e o mindinho escarafuncha a falha, a princípio do dente, mas que ganha uma dimensão mais ampla, fazendo um contraponto à sabedoria e ao poder do gordo. A comicidade desliza do personagem gordo para o narrador, a ironia se transforma em humor. Se quando criança o cuspe era símbolo do poder, na vida adulta o cuspe limita-se a ser

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“um fiozinho obediente, sem penache nenhum” (ANTUNES, 2002, p.94). Perdem-se os dons que se supunha ter na infância. Agora nem pode preencher os círculos da boca aberta do gordo, que poderia destronar aquela vã suposição de saber. A aparente cordialidade do encontro, manifestada pelo gordo, é marcada por hostilidade por parte do narrador. Os gordos comem chocos com tinta e o narrador deseja que espinhas os impedissem de engolir. Mas os gordos engolem triunfais “enquanto meu dedo, coitado, vasculha ruínas” (ANTUNES, 2002, p.95) – do dente quebrado, do passado, das falhas, do desencontro, da fragilidade do infinito – “antes de regressar, humilde ao bacalhau” (ANTUNES, 2002, p.95). As ruínas o levam de volta ao tema da dificuldade da escrita, presente na primeira frase da crônica: o que vou escrever hoje? Pode-se ver aqui o deslizamento dos referentes e os contornos que o narrador faz em torno do buraco do real. Equiparado ao buraco do dente, a escritura faz contornos nele, pois não quer tampá-lo, mas evidenciá-lo. Também Schollhammer (2002) procura definir o que pode ser entendido, no âmbito da literatura contemporânea como um “novo real”, em comparação com o realismo. Mostra que, a partir do modernismo, a noção de realidade funcionou como limite de representação que servia como contraponto à experimentação artística, marcada pela desreferencialização da escrita e da obra de arte, em oposição ao movimento realista do século XIX. Mas o que se pode entender por “novo real”? O autor recorre às teorizações de Hal Foster (1994), ao sugerir que ele não estaria mais ligado ao efeito de representação, mas que deveria ser entendido como “evento de um trauma.” A obra se torna real quando é capaz de produzir “efeitos sensuais e afetivos parecidos ou idênticos aos encontros extremos e chocantes com a realidade em que o próprio sujeito em sua suposta inteireza é colocado em questão” (SCHOLLHAMMER, 2002, p.82). Ou seja, vê-se como um sujeito dividido. A

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tendência seria reproduzir esse efeito de trauma16. A experiência traumática “pode ser apenas evocada, uma vez que articula um limite intransponível da representação, um lugar do silêncio,

do

invisível,

do

inarticulável.”

(FOSTER,

1994,

p.147

citado

por

SCHOLLHAMMER, 2002, p.82). Diante do traumático ocorre o que, de acordo com Schollhammer (2002), Lacan denomina de quiasma17 – construção anômala originada do cruzamento de construções normais – entre uma visão que emana do sujeito e um olhar que emana do objeto. Além de olhar, o sujeito sente-se olhado pelo objeto, numa espécie de alucinação. Esse olhar de fora é que produz efeitos de real. O quiasma não leva o sujeito a reconhecer sua continuidade em relação ao mundo, mas, ao contrário, a uma experiência de alienação, de falta. Essa interpretação feita a partir das teorias de Lacan permite pensar que a imagem pode caracterizar-se por exercer uma outra função. Ou seja: não a de acolher o mandado representativo de pacificar o olhar, unindo o simbólico e o imaginário contra o real, mas a de expor o efeito mortificante sobre o sujeito, podendo ser “um lugar de embate com a estabilidade representativa do visível” (SCHOLLHAMMER, 2002, p.85). É como se aí a obra se tornasse algo abjeto – nem objeto e nem sujeito – para evidenciar o trauma e tocar o real. Parece que quando Freud, como já mencionado, refere-se à força do olhar como uma forma de apresentação do estranho, está apontando algo dessa ordem. Nas crônicas, a presença do narrador estranhado diante da imagem que o olha do espelho produz esse efeito. É uma imagem que não pacifica, pelo contrário, interroga, produz furos na imagem. Quem é esse? Quem sou eu? Assim, na crônica “Antonio 56 ½” parece que deparamos com a transformação do eu em um ele sem rosto. Refere-se à fragmentação – 16

Conceito freudiano para se referir ao que não pode ser representado mas que retorna sempre, pedindo representação. 17 Essa construção se dá a partir de dois cones. No primeiro, há um sujeito focal e inteiro que olha e, a partir do seu olhar, o sistema representativo é organizado. No segundo cone está o sujeito em posição de quadro, no qual se reflete o olhar mortificante do objeto. Na sobreposição dos dois cones, o sujeito encontra-se dividido entre o lugar de sujeito da representação e o da subjetividade neutra e exterior produzida a partir do olhar alheio.(LACAN, 1988b)

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pedaços de rosto refletidos numa experiência inquieta. A imagem refletida é um duplo que não constrói o presente, nem o passado, mas produz estranheza. O estranho aqui é uma espécie de revelação do real, muito diferente de realidade, pois é um reino equívoco onde já não existe limite, nem intervalo e onde cada coisa absorvida em seu reflexo aproxima-se da consciência que se deixou encher pelo anonimato. A imagem no espelho, em vez de levar ao apaziguamento, produz o quiasma. É um olhar alheio:

acharmo-nos ao mesmo tempo no interior e por fora da intensidade inicial, ou seja do conflito entre o cotidiano e o esmagamento cósmico, atemorizados pelo horror e a alegria primitivas, vagando sem cálculo nem sentido pelo ermo dos dias. (ANTUNES, 2006, p.134)

Lobo Antunes, embora em entrevistas afirme desgostar da psicanálise e não ter conhecimento dos autores a que aqui recorremos para fazer uma leitura de suas crônicas, coloca na boca do narrador da referida crônica: Nunca decidira escrever livros: qualquer coisa ou alguém impunha-lhe que os fizesse e dava graças a Deus que aqueles de quem gostava fossem criaturas livres e o considerassem com uma espécie de indulgência que se sente em relação a quem perdeu um braço ou uma perna a serviço de uma causa insensata. Os amigos tinham a tendência a guiá-lo com a mão amável com que se conduz um cego, avisando-o dos desníveis da rua, certos que uma inocência desamparada o habitava deixando-o, indefeso, à mercê de quase tudo e principalmente de si próprio. Se pudessem tiravam-lhe os atacadores e o cinto como se faz aos presos a fim de o impedir de escapar-se sabe-se lá para onde ou de morrer por descuido, dado que não distinguia o açúcar da areia nem os diamantes do vidro, ocupado como andava a gravar palavras tão profundamente que se pudessem ler, como Braille, sem o auxílio dos olhos. Que os dedos corressem pelas linhas e sentisse o fogo e o sangue. Para que sentissem o fogo e o sangue tornava-se necessário que ele ardesse e sangrasse. Saberiam os aspirantes a escritores o que se paga por uma única página? (ANTUNES, 2002, p.18) (grifo nosso)

O que se pode perceber aqui é que, para Lobo Antunes, a escritura é aquela que produz sulcos na linguagem, que fere o papel como o Braille e, por isso, faz sangrar. Para transmitir o que está além da palavra é preciso que o escritor, habitado pela experiência de desamparo, desocupe-se das preocupações do cotidiano e, não por um ato de escolha,

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dedique-se a essa causa insensata de escrever o que é impossível de ser escrito. Ou seja, inscrever a letra capaz de sulcar a pele/texto e tocar o real. Prosseguindo com as ponderações sobre as relações entre o real e o imaginário no que diz respeito ao texto literário, Blanchot (1987) tem contribuições valiosas, pois distingue duas versões do registro imaginário. A primeira versão estaria ligada à forma de dispormos os objetos. Na ausência do objeto, a imagem confunde-se com sua significação. Essa versão estaria veiculada à arte clássica. O outro tipo de imaginário corresponderia a imagens que não são suportadas por nada, constituem um acontecimento indecifrável. Na primeira versão, o imaginário teria a função de mascarar o real e, na segunda, de operar a partir dele, evidenciando-o.18 De acordo com Lopes (2004), pode-se compreender a partir de Blanchot que, nessa passagem de uma versão para outra, “passa-se do desinteresse implicado na contemplação da imagem ideal para uma passividade em que se é tomado pelo exterior, mesmo quando é o mais íntimo que se torna exterior.” (LOPES, 2004, p.76-77). Assim, continua a autora, “a imagem deixa de supor uma relação ao visível e revela-se sobretudo como figuração do nãovisível” (LOPES, 2004, p.77). Desse modo ela nega o sublime que caracterizaria a primeira versão do imaginário. Pelo contrário,

Ela afirma tanto a dor da perda como a alegria da criação; a dor de ser o passado e não dominar o passado, a alegria de ser por esse não domínio que se abre o futuro em sua imprevisibilidade (...) imagens que desfazem a alternativa entre o sistema de signo e sua apropriação pelo sujeito, constituindo um espaço outro. (LOPES, 2004, p.77)

Esse espaço só pode ser visto de maneira lateral, pois não se apresenta no seio do discurso. Pode-se concluir que, para um certo tipo de literatura, o real se apresenta e não se

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A primeira versão do imaginário condiz com a delimitação desse registro feita por Lacan na década de 50 e a segunda com as contribuições do psicanalista na década de 70, quando privilegia o registro do real.

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representa, pela via do imaginário. Mas, como o que é da ordem do indizível se apresentaria no imaginário? As ponderações de Iser (1983) sobre o fictício podem ser esclarecedoras desse tema, uma vez que o autor faz um questionamento dos limites entre ficção e realidade, tanto no que diz respeito à realidade que se apresenta na ficção, quanto na incidência na ficção daquilo que é suposto ser realidade. De maneira tangencial aos conceitos psicanalíticos, irá defender o ato de fingir como uma condição para que as produções imaginárias, vistas usualmente como difusas, sejam transladadas a uma determinada configuração, que se diferencia dos devaneios, sonhos e outras produções da fantasia. No fictício se produziria uma transgressão dos limites do imaginário em sua fronteira com o real. O artifício do trabalho de ficção estaria na forma de combinar o significado verbal, o mundo introduzido no texto e o esquema de organização dos personagens e suas ações. Essa relação ganha estabilidade pelo excluído e o que está ausente passa a ganhar presença,

...em um campo de co-presença, que faz com que as relações realizadas incidam sobre sua zona de sombras e possibilitem a diversa estabilização desta. O relacionamento, portanto faz com que as posições interligadas sejam transgressoras de sua posicionalidade, mas também que as relações realizadas – de acordo com a exigência intencional do texto – transgridam as possibilidades rechaçadas. (ISER, 1983, p. 966)

O imaginário poderia assim operar no espaço do real e permitir a experimentação de um acontecimento que não é referenciável. A conclusão de Iser faz lembrar a tese de Ana Portugal, pois a autora acredita que a realidade poética consegue manejar maiores ou menores efeitos do estranho porque tem em suas mãos o imaginário. Mas, tanto no excesso quanto na falta de imaginário, o estranho se perde, prevalecendo o familiar. O estranho requer apenas um fio de imaginário para se sustentar.

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Pode-se perceber que todos esses autores citados, apesar de pertencerem a diferentes campos, são unânimes em defender que a literatura pode exceder os limites da linguagem e forçar a palavra a ir além do dito. Antes de terminar esse item, é importante lembrar as contribuições de Deleuze e Guattari (1977), autores já citados, contidas no livro: Kafka, por uma literatura menor. Nessa obra eles vão, justamente, mostrar o vigor com que um texto, tido a priori como menor, pode mostrar que “a língua é aí modificada por um forte coeficiente de desterritorialização.” (DELEUZE e GUATTARI, 1977, p.25). Como já foi visto, se o território é marcado pela certeza e pelo fechamento, na desterritorialização o acontecimento se abre para o insondável das linhas de fuga. O conceito de literatura menor foi pensado, inicialmente, para se referir aos textos escritos em alemão pelos tchecos, ou seja, ao uso de uma língua por estrangeiros, no sentido de que eles não a dominavam como dominariam a língua natal. Ora, se muito mais que falar, somos falados pela língua, ela será sempre, inevitavelmente, estrangeira, particularmente no texto literário. Ao classificar essa literatura como menor, os autores, de maneira invertida, estão justamente fazendo uma exaltação a esse tipo de texto. A conclusão no final da vida de Deleuze é mais ampla, torna-se, inclusive, epígrafe de um dos seus livros: “os belos livros são escritos numa espécie de língua estrangeira” (DELEUZE, 1977). Deleuze, assim como Lacan, não se interessa pela literatura clássica, a das “belas letras”. Opondo-se a uma literatura maior, afirma: “a literatura menor começa por enunciar e só vê e só concebe depois (a palavra, eu não a vejo, eu a invento). A expressão deve despedaçar as formas, marcar as rupturas e as ramificações novas” (DELEUZE, GUATTARI, 1977, p.43). Pode-se ver como o conceito de literatura menor aproxima-se do que até agora está sendo descrito como presença do estranho, característica fundamental para definir o literário, de acordo com esses filósofos.

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Em Kafka, por uma literatura menor (DELEUZE, GUATTARI, 1977), a obra de Kafka é estudada, e os autores consideram de fundamental importância incluir nela as cartas publicadas do escritor. Se Kafka não pensou em publicá-las, mas em destruí-las, Deleuze e Guattari consideram que elas “constituem uma engrenagem indispensável, uma peça motriz da máquina literária.” (DELEUZE, GUATTARI, 1977, p.44). Seria em função das potencialidades e da insuficiência das cartas que outras peças da máquina literária teriam sido montadas.

1.6 – Crônicas de Lobo Antunes: escrita de fragmentos

Este capítulo norteou-se pelo objetivo de demonstrar que o gênero crônica não pode ser desmerecido, nem de um modo geral, nem no que diz respeito à obra de Lobo Antunes especificamente. Apesar de aparentemente simples, as crônicas podem trazer revelações inquietantes. Essas revelações dizem respeito, de acordo com a hipótese que norteia essa tese, ao fato de haver vestígios do estranho entranhado no que trazem de familiar, permitindo uma mostração do real, entendido como o que não é dito pela palavra, mas que se revela nas entrelinhas do texto e é transmitido ao leitor. Elas não podem ser vistas como uma literatura de segunda categoria, como seu autor as denomina. Fazendo um paralelo entre as cartas no contexto da obra de Kafka com as crônicas no conjunto da obra de Lobo Antunes, pergunto se não teriam pontos de contato importantes, se as crônicas não exerceriam um papel semelhante ao das cartas. Onde elas se situariam no contexto da obra? Reis (2004) afirma que é evidente que Lobo Antunes valoriza de maneira desigual os romances e as crônicas, na medida em que se sabe do empenho e da exigência que

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o escritor coloca na escrita de seus romances. Mas nas crônicas, continua Reis, encontram-se funcionalidades que os romances podem amplificar ou minimizar. Nelas há

um espaço de fronteiras difusas e contornos imprecisos, tão difusas e tão imprecisos, afinal como o próprio gênero discursivo que agora está em causa. Espaço fragmentado, antes de mais nada, porque evocado pela parcelar e quase minimalista capacidade de representação de textos cuja dimensão e fôlego são consabidamente escassos; espaço que tende contudo à complexidade de um universo, se soubermos encontrar os elos de conexão que ligam estes textos, próximos no tempo da sua escrita e nas opções temáticas que revelam. (REIS, 2004, p.28-29)

É por se apresentar como uma escrita fragmentária, mas carregada de complexidades que a crônica ocupa um lugar importante no conjunto da obra de Lobo Antunes. Reis afirma também que Lobo Antunes opera uma remodelação do gênero, tanto no que diz respeito à originalidade que se encontra nas crônicas, quanto ao gesto de visitar de novo pela escrita, plasmar de novo, o que está nos romances, na medida em que há uma interação entre esses escritos. As crônicas seriam despojos, lixos dos romances? Pergunta Reis. Para responder a essa questão, o crítico retoma O livro do desassossego de Bernardo Soares, de Fernando Pessoa, que foi classificado por seu autor como lixo e, no entanto “consagra a fragmentação como atitude estética e o fragmento como categoria literária.” (REIS, 2004, p.31). Se as crônicas não têm a consistência de um romance, é “porque lhes sobra em fragmentação e em intensidade subjetiva o que lhe falta em coerência orgânica” (REIS, 2004, p. 32). Retomando as colocações de Deleuze e Guattari que veêm as cartas de Kafka como uma peça motriz na obra do autor, parece ser possível transpor essa mesma relação para o lugar das crônicas no conjunto da obra de Lobo Antunes. Também elas constituem uma peça indispensável da máquina literária do escritor português. Como já foi referido, tanto Seixo (2002), quanto Reis (2003) afirmam que se encontram nelas sem*ntes de idéias que serão elaboradas mais tarde nos romances, ou retorno à temas dos romances. É interessante observar

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ainda que, em maior ou menor grau, os três escritores Fernando Pessoa, Kafka e Lobo Antunes desmerecem alguns de seus escritos. Entretanto, tratam-se de textos ricos, inaugurais, ou, no mínimo, fundamentais para a compreensão da obra desses autores. Parafraseando Lacan (2003), de lixo (litter) à letra (letter) basta um passo. E, se o real, visto como resto/lixo, da ordem do indizível, manifesta-se nessas crônicas e em todas as obras que pertencem a um certo tipo de literatura, uma literatura menor que se opõe à clássica, ele só poderá ser mostrado pelos vestígios que deixa no texto. Freud, Lacan, Blanchot, Barthes, Deleuze e Iser, com terminologias e conceitos diferentes, falam de uma escritura que revela algo que se encontra além do enunciado. Assim, tomando as crônicas como uma escritura marcada pela fragmentação do tempo, pelo desamparo, pela presença da ironia e de um humor voltado para o próprio narrador e para uma reflexão sobre o fazer literário, é que se pode, a partir dos efeitos performáticos da linguagem, detectar os vestígios do estranho no tecido familiar das crônicas. É isso que se pretende mostrar nos próximos capítulos.

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CAPÍTULO 2 – ESCRITA DE (DES) MEMÓRIAS?

- Deve ter sido assim, se calhar um bocadinho diferente, tanto faz. Ou se calhar nada disso e tanto faz também. (Lobo Antunes)

Ao tentar circunscrever o que seria estranho, Freud recorre aos usos que a palavra Heimlich teria a partir do dicionário (SANDERS, 1860, v.1, p.729 apud FREUD, 1919), onde o psicanalista colhe a seguinte citação: o estranho seria “uma fonte enterrada ou um açude seco. Não se pode passar por ali sem ter a sensação de que a água vai brotar de novo” (FREUD, 1919, p.280). Nesse momento, o sentido da palavra pode ser invertido, sem que se saiba mais o que distinguiria o familiar do estranho. Esta citação de Freud é interessante porque permite refletir sobre a forma como Lobo Antunes lida com o tempo. As lembranças se apresentam nas crônicas como uma espécie de açude seco ou fonte enterrada: sempre podem brotar de novo. Ou ainda, o passado pode ser também “o que deveria ter permanecido secreto e oculto, mas veio à luz”.19 Essas considerações de Freud sobre o estranho ajudam a refletir sobre a questão das memórias nos romances e crônicas de Lobo Antunes, pois em sua obra encontramos várias referências a fatos da vida do autor. Além disso, esses relatos muitas vezes se repetem em vários de seus textos, como se o autor estivesse sempre girando em torno de um mesmo eixo:

Há ocasiões em que me pergunto por que motivo, cada vez com mais freqüência, regresso à Beira alta, e a única resposta é que me sinto um cão que deixou por aqui um osso enterrado, que me lembro do osso sem ter a certeza de que osso é que era nem em que lugar o escondi e, no entanto, necessito encontrá-lo como se o osso fosse para mim uma questão vital. (ANTUNES, 2006, p.43)

Particularmente, no que diz respeito às crônicas, freqüentemente encontramos nelas referências a tempos da infância, a nomes de familiares do autor e de outras pessoas

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Definição de Heimlich proposta por Schelling e transcrita por Freud em seu ensaio.

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conhecidas; a lugares de Lisboa onde, de fato, transitou; a cenários da guerra de Angola, em que esteve em atividade nos campos de guerra; ou ainda a situações relacionadas à prática psiquiátrica que consistiu de fato numa experiência do autor. Blanco (2002) enfatiza a transparência dos traços autobiográficos presentes nas crônicas, assim como a reprodução de sua forma de olhar a realidade. Ele se justifica: “porque não se inventa nada, a imaginação é a maneira como se arruma a memória.” (BLANCO, 2002, p.114). Outro dado que leva à impressão de “memórias” nas crônicas é o fato de a sua grande maioria ser escrita em primeira pessoa. Há ainda outras que, apesar de escritas em terceira pessoa, referem-se a um personagem chamado Lobo Antunes. Esse narrador/personagem muitas vezes relaciona-se com situações vividas pelo autor, o que se confirma pelo confronto com dados de entrevistas. Há também algumas crônicas nas quais é usado o pronome “eu” para referir-se a acontecimentos completamente alheios aos dados biográficos. A escrita em primeira pessoa tem a funcionalidade de dar um caráter íntimo e confessional ao texto, fazendo uma bricolagem entre ficção e vida. Farra (1978) faz um percurso teórico com o objetivo de legitimar o texto literário escrito em primeira pessoa. Afirma que, no século XIX, os romances escritos em primeira pessoa eram considerados de valor menor, porque a escrita autobiográfica não era vista como estilisticamente correta. O que a crítica vai nos mostrar é que essa valoração negativa se deveu à ilusão de acreditar-se que a voz do escritor seria sinônima da voz do autor. Farra considera que todo autor, independentemente dessa dicotomia eu/ele, sempre cria uma nova realidade à medida que vai narrando. O que ocorre de específico nas narrativas em primeira pessoa é que há uma relação especial entre o autor e sua máscara narrativa. Por isso o leitor deve ser alertado para não confundir escritor e narrador, risco que pode ser maior nos romances escritos em primeira pessoa (e aqui será generalizado para as narrativas ficcionais). Nesses casos o narrador é, ao

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mesmo tempo, sujeito do enunciado e sujeito da enunciação, encarnando o dizer enquanto mostrar, dramatizando a própria mente enquanto narra a história. A escrita em primeira pessoa, quando apresenta um eu fraturado, talvez seja uma das formas mais incisivas de apresentação do estranho. Em várias crônicas publicadas nos três livros de crônicas de Lobo Antunes, encontra-se um narrador que fala em primeira pessoa e, em muitas, refere-se a um eu que não se reconhece.- Não sei quem sou, busco-me no meu passado, mas também lá não me encontro -, repete o narrador de distintas maneiras, em diversas crônicas escritas em forma de memórias de um passado que não se alcança e nem pode iluminar o presente:

Ignoro, sinceramente o que me faz voltar. Saudades de quê? Nunca me senti especialmente feliz aqui (...) A minha infância? O menino que deixei de ser tornouse um antepassado e em certa medida uma criatura enigmática, distante, da qual sou filho ou neto, da qual conservo uns traços: o orgulho, a paciência, a solidão. O sorriso, talvez. Já em criança se me afigurava esquisito haver nascido dos meus pais: herdei pouca coisa deles, acho eu, qualidades, defeitos, parecenças físicas. (ANTUNES, 2006, p. 107)

Matheus (2003), ao estudar a presença da infância nas crônicas de Lobo Antunes, lembra que vários personagens e acontecimentos aí relatados se apresentam também nos romances, havendo um espaço de sobreposição ou de contaminação entre os textos, tanto no que diz respeito à temática quanto à forma. Uma das temáticas recidivas seria a da infância vista, às vezes, como o único tempo em que a felicidade teria sido possível, em contraponto a um presente desencontrado e, em outros momentos, como anúncio de um mundo já então tido como decadente, marcado pela solidão e por valores vistos como duvidosos pelo narrador. Também Reis ressalta, na obra de Lobo Antunes, um constante “chamamento da criança ausente” (REIS, 2003, p.28), como um movimento proustiano de ressonância em que uma memória nostálgica busca rever o outro que ele parece ter sido. “Tudo emerge numa crônica que oscila entre o testemunho da recordação pessoal e o impulso para a

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narrativização, quase de índole ficcional” (REIS, 2004, p. 28). O crítico afirma também que as crônicas têm como um dos procedimentos recorrentes a inscrição da subjetividade do narrador, “não raro com recurso à recordação autobiográfica.” (REIS, 2004, p.29) Afirma ainda que Lobo Antunes remodela a concepção do gênero crônica, tecendo os seus textos como conseqüência de

uma revisitação de um mundo que o escritor conhece por duas vias relacionadas entre si: pela experiência de vida e pela ficção que tem escrito, sobretudo aquela em que reconhecemos a marca forte da lembrança pessoal e do testemunho autobiográfico. (REIS, 2004, p.30)

Mas o sujeito da escrita, que se apresenta em primeira pessoa, afirma não saber de si, está particularmente perdido no túnel do tempo. Um fragmento da crônica “Província” é útil para introduzir a reflexão sobre a dimensão do estranho/familiar a partir de uma noção não linear do tempo, pois sem dúvida há uma correlação entre o eu fragmentado e o tempo visto como lacunar:

Deve ter sido assim. Ou se calhar um bocadinho diferente, tanto faz. Ou se calhar nada disto e tanto faz também. Quem vai se interessar, tirar a limpo, perguntar-me? Seja como for é noite, era noite. Estava sentado na varanda diante da serra. Percebias lá dentro, a conversa das pessoas crescidas, vozes, risos, discussões, risos de novo, palavras que não entendias o que queriam dizer. (...) É obvio que foi assim. (ANTUNES, 2002, p.65)

Ele exemplifica o modo como Lobo Antunes trabalha a dimensão do tempo e, como o narrador brinca com a noção memória e imaginação, mostrando que pouco importa a distinção entre fantasia e realidade, pois a primeira se embaralha com a segunda. O fragmento também chama a atenção para o fato de o narrador hom*odiegético iniciar a crônica dirigindose a uma terceira pessoa, um suposto leitor e, subitamente, mudar de direção e conversar com um outro eu, um duplo de si mesmo, como se um adulto falasse com a lembrança da criança que um dia teria sido (ou poderia ter sido).

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Essa constatação do eu ser um outro é tratada particularmente pela psicanálise que mostra como o sujeito humano é dividido por constituição. Há um Outro que fala em cada um de nós. E o sujeito da escritura é justamente esse que, atravessado pela estranheza, não se reconhece e, por isso mesmo, escreve. A propósito desse tema, o narrador da crônica “Herrn Antunes” descreve a disjunção entre o narrador e a pessoa civil chamada Lobo Antunes, tratada por Herrn, num hotel na Alemanha: “Dou com minha fotografia no jornal que o hóspede da mesa ao lado folheia: não se assemelha a mim, conforme eu não me assemelho a mim.” (ANTUNES, 1998, p.99). Também em entrevista, Lobo Antunes afirma que “às vezes quando me leio, fico surpreendido. E pergunto-me se sou realmente eu quem o escreveu (o romance) e volto a sentir a sensação de que é o outro que escreve, o outro que recebe prêmios”. (BLANCO, 2002, p.164). A escrita então é tida como algo alheio, proveniente de outrem. Ao mesmo tempo, em outros momentos das entrevistas, diz ter tratado em seus livros de situações que teria vivido. Essas declarações que Lobo Antunes dá nas entrevistas a Blanco são sugestivas para se pensar na relação vida e obra. Pois acredita-se que não se trata de ver a obra como um espelho da vida, mas sim perceber como o autor ficcionaliza a vida, fazendo uma mistura indissociável entre vida e obra, fantasia e realidade. Parece que Lobo Antunes brinca com o leitor. Propõe um pacto autobiográfico e em seguida o retira. Este dar e retirar a sugestão de veracidade factual do que escreve está presente já no título de algumas crônicas: “António João Pedro Nuno Manuel”20 (1998, p.233), “Descrição da infância” (1998, p.343), “Subsídios para a biografia de Antonio Lobo Antunes” (2002, p.49). Nessa brincadeira o autor pode também fazer o inverso, ou seja, emprestar seu nome a um personagem que parece não ter nada em comum com sua vida pessoal, tal como acontece

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Nomes do autor e dos irmãos.

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na crônica “A propósito de ti” (1998,p.153), em que o narrador/personagem se chama “Antunes”. Assim, faz-se necessário aprofundar a relação entre escrita, memória e veracidade factual do que se pode ler nos textos dessas crônicas, discutindo, inicialmente, o que seria um texto autobiográfico.

2.1 - Considerações sobre auto-bio-grafia

Para fazer considerações a respeito da questão autobiográfica na obra de Lobo Antunes e nas crônicas em particular, optou-se por uma partição dessa palavra em três termos: auto é um prefixo que diz respeito a um si mesmo, bio significa vida e grafia diz respeito a escrita. A primeira pergunta a que essa partição nos remete é: o que pode significar a expressão: “si mesmo”? Se isso não é tão simples quanto pode parecer à primeira vista, mais complexo se torna quando pensamos numa escrita de si mesmo. Lejeune faz um estudo com o objetivo de definir o que seria uma autobiografia. Afirma que um dos primeiros problemas encontrados ao tentar delimitar esse conceito diz respeito às relações entre biografia e autobiografia, semelhantes às relações entre a novela (ficção) e a autobiografia, devido à zona difusa que existe entre esses campos. Tomando como ponto de partida o lugar de um leitor, Lejeune define a autobiografia como uma “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza especialmente sua vida individual, sobretudo a história de sua personalidade” (Lejeune, 1980, p. 14). Essa definição coloca em jogo quatro categorias diferentes: 1 – forma da linguagem: narração em prosa; 2 – tema: vida individual, história de uma personalidade; 3 – situação do

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autor: identidade autor e narrador; 4 – posição do narrador: identidade narrador e personagem principal, numa narração retrospectiva. Para Lejeune, essas categorias estabelecem fronteiras com outros tipos de texto, entretanto as condições três e quatro têm que ser necessariamente preenchidas. No caso da autobiografia, há uma identidade entre autor e narrador ou não há, assim como deve haver entre o narrador e o personagem principal, para que o prefixo auto possa fazer valer. Não pode existir gradação possível e, se houver dúvida, ela implica em uma conclusão negativa. Entretanto, essa identidade suscita problemas, tais como: Como se pode expressar a identidade entre narrador e personagem do texto? Como se manifesta a identidade do autor e do narrador nas narrativas em primeira pessoa? Até que ponto se confundem as noções de identidade e semelhança (cópia certificada) nos textos que versam sobre o tema? Lejeune, a partir das ponderações do lingüista Benveniste de que o eu seria apenas um conceito gramatical, signo virtual que será preenchido apenas na instância discursiva, conclui que é impossível capturar o eu, sendo igualmente impossível a escrita de si mesmo. O que restaria ao leitor seria buscar dados objetivos para identificar um texto como autobiográfico, tais como: identidade entre autor, narrador e personagem, remetendo ao nome do autor escrito na capa do livro. De acordo com Lejeune:

Nesse nome se resumiria toda a existência do autor, único sinal no texto de uma realidade extratextual inquestionável, que envia a uma pessoa real, que exige dessa maneira que se lhe atribua, em última instância, a responsabilidade da enunciação de todo o texto escrito. (LEJEUNE, 1980, p.51)

A conclusão de Lejeune é que a autobiografia se construiria a partir de um pacto, um contrato entre autor e leitor, um modo de leitura e não necessariamente de uma tessitura de eventos da vida do autor com outros elementos extratextuais, a não ser o nome próprio. Essa definição, de acordo com o autor, põe em evidência o essencial: o contrato de identidade que é selado pelo nome próprio, contrato que vale tanto para o leitor quanto para quem escreve o

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texto. Na medida em que o conceito de identidade é relativizado – afinal é-se idêntico a quê? – a pergunta sobre a legitimidade da autoria leva a uma outra interrogação. Voltando às crônicas, em “Da morte e outras ninharias”, o narrador questiona até mesmo o pacto proposto por Lejeune, ao indagar a questão da legitimidade do nome do autor escrito na capa:

Cada vez menos os romances que publicam com o meu nome têm seja o que for de deliberadamente meu. Na minha idéia, e digo-o com convicção absoluta, limito-me a assistir. Chupam-me o sangue e o tempo e é apenas isso que me exigem. Deveriam editar-se sem autor na capa, porque desconheço quem o autor é. (ANTUNES, 2006, p. 145)

Com relação à temática da inter-relação vida e obra, Miranda (1992) afirma que a autobiografia literária situa-se “num centro de tensão entre a transparência referencial e a pesquisa estética” (MIRANDA, 1992, p.30). Entretanto, o crítico expande suas considerações, ao dizer que qualquer relato autobiográfico é uma auto-interpretação, uma maneira de se dar a conhecer. Assim, o relato autobiográfico é, inevitavelmente, revestido / entretecido de invenção. O conceito de auto-retrato (BEAUJOUR, 1980) parece mais condizente que o de Lejeune21 para se pensar nas crônicas de Lobo Antunes uma vez que o auto-retrato é tido como uma formação polimorfa muito mais heterogênea e complexa que uma narrativa autobiográfica. Não seria uma autodescrição pois o autoretratista pretenderia fazer uma hom*ologia entre o eu e o mundo ( fazendo valer a banda de Moebius). Miranda (1983) vai tomar o conceito de auto-retrato para analisar o livro Água viva de Clarice Lispector e que pode também contribuir para elucidar a questão da vida e do texto em Lobo Antunes. “O auto-retrato é um sistema de recorrências, retomadas, superposições e correspondência entre elementos homólogos e substituíveis, de modo que sua principal

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Mais tarde, o próprio Lejeune (1980) colocou em cheque o seu conceito de autobiografia.

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aparência é a do descontínuo, da justaposição anacrônica e da montagem.” (MIRANDA, 1983, p.222). Assim o auto-retrato prescinde da unidade, é uma escrita de fragmentos, uma vez que o narrador não conta o que fez, mas tenta dizer “quem é”, na tentativa de compreender o mundo e a si mesmo. O trecho abaixo parece coerente com o conceito de autoretrato:

Nasci assim, casual combinação de moléculas a que chamam António, nasci assim meio surpreendido , numa família que me toma por seu e engana-se,quantas vezes penso que não sou daqui, oiço o que não há, vivo noutro sítio entre aparições, onde as vozes deste lado me chegam confusas, remotas numa língua que não é bem a minha e acompanhadas de sorrisos, palmadinhas, soslaios curiosos - Nunca cá estás, pois não? (ANTUNES, 2006, p.141-142)

Na busca pela identidade o narrador gira diante de um espelho caleidoscópico que se recusa a lhe dar a resposta, mas o obriga a continuar sua busca impossível que não se detém, nem chega a nenhum porto seguro de certezas. Numa direção semelhante, caminha Barthes. No livro que tem o título: Roland Barthes por Roland Barthes, encontramos retratos de familiares, de lugares e pequenos textos de impressões. Entretanto, na página de rosto, há uma epígrafe em forma de alerta: “tudo isso deve ser considerado como dito por um personagem de romance”. O pacto aqui é sutil: mesmo diante de fotos, retratos do passado, Barthes afirma que o livro não trata de fatos de sua vida, é ficção. Se, nesse livro, podem-se, evidentemente, encontrar fatos biográficos, a fragmentação que é a sua marca aponta para uma escritura doadora de sentidos: “escrever por fragmentos: os fragmentos são então pedras sobre o contorno do círculo, espalho-me à roda; todo meu pequeno universo em migalhas; no centro, o quê?” (BARTHES, 1977, p.101). A conclusão é que o texto autobiográfico é, em maior ou menor grau, sempre ficcional. No que diz respeito à obra de Lobo Antunes, especificamente, Seixo (2002) considera que sem dúvida há coincidências entre a produção romanesca do escritor, as crônicas e depoimentos dados em entrevistas ou outras declarações confessionais. Essas

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coincidências se apresentariam a partir de quatro tipos de abordagem: 1 – a que organiza os arredores do eu, ou seja, o sociotexto; 2 – as experiências específicas do eu (contingências do percurso existencial e anímico); 3 – a designação do nome próprio, quer para o narrador, quer para as personagens, indiferenciando a voz que vive da voz que escreve; 4 – a insistência na configuração dêitica da linguagem, que mostra muito mais do que conceitua. Seixo considera que:

em literatura, a subjetividade da escrita acarreta, de forma mais ou menos evidenciada ou mais ou menos subtil, a projeção de uma circunstância efectiva direta, transformada, reelaborada ou contrastiva, que de algum modo aponta para o autor que a escreve. (2002, p.475)

A questão não seria, portanto, buscar dados da existência do escritor em sua obra, mas “tentar entender um texto a partir de seu modo de evocar e de provocar o real”. (SEIXO, 2002, p. 475) A questão autobiográfica, continua Seixo,

só tem sentido se o traço que remete para a figura do escritor, para sua circunstância ou sua experiência, criar uma interpelação do texto em relação àquele que o lê, e obrigar essa interpelação a seguir um caminho de conjectura quanto aos labirintos da produção artística. (SEIXO, 2002, p. 476)

É na materialidade da escrita que se configura a relação dúbia sujeito versus circunstâncias, permitindo uma intersubjetivação em processo, o que leva à comunicação, através do texto, entre o narrador-escritor e o leitor. Seixo acredita que as crônicas estão mais próximas dos fatos biográficos. Comparando Proust e Lobo Antunes, a crítica afirma que, se no primeiro a existência seria transmutada em ficção, na obra de Lobo Antunes a ficção apresenta faces e falhas em que um discurso do eu pode se apresentar. Seixo acredita que essa utilização, às vezes acintosa, de dados autobiográficos na ficção antuniana, vai colocar o outro no lugar do mesmo, levando a um questionamento

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radical da identidade, ou seja, à premissa psicanalítica de que o eu é um outro que desconheço. Essa conclusão é coerente com a nossa hipótese de que a obra de Lobo Antunes atravessa a noção de realidade para falar de algo que é da ordem do estranho, do impossível. Também Blanco acredita ser impossível distinguir as vivências pessoais de Lobo Antunes de sua produção ficcional, devido ao modo que uma se mistura com a outra. Afirma que “quando lhe fazemos uma pergunta sobre um livro, responde apelando à sua biografia, e quando o interrogamos sobre a biografia, lamenta as enormes dificuldades que enfrenta ao elaborar sua prosa.” (BLANCO, 2002, p.63). Por fim, vale lembrar o livro A vida escrita de Ruth Silviano Brandão (2006), em que a crítica refere-se à relação entre vida e obra. Relatando sua trajetória como crítica literária, a autora afirma que, devido ao contato com textos que se referem à interlocução entre a psicanálise e literatura, em épocas anteriores evitou falar da vida articulada à obra, receando reduzir a escrita a patologias. Conclui, entretanto, que, se é necessário cuidado nessa articulação, não quer dizer que ela não possa ser feita. Afinal, é com a matéria da vida que se inscreve e se escreve o mundo. Escrever seria decorrente de uma necessidade de tornar a vida possível, ou seja, é algo vital. Assim, explica a autora:

O que chamo de vida escrita é a unidade entre escrever e viver e vice versa, pois a escrita se faz por traços de memória marcados, rasurados ou recriados no tremor das mãos, no pulsar do coração que faz bater o sangue na ponta dos dedos, na superfície das páginas , da tela, da pedra, e onde se possam fazer traços, naquilo que não se lê, o que se torna letra, som ou sulco, marcas dessa escavação penosa que fazemos no real. (BRANDÃO, 2006, p.28)

Essa afirmação aproxima-se das considerações de Lobo Antunes sobre as motivações de sua escrita. Ao ser perguntado por que escreve, ele responde não saber, pois escreve por necessidade e esse questionamento seria equivalente a perguntar a uma macieira porque dá maçãs (BLANCO, 2002).

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2.2 - Memórias, des-memórias e escritura

Se a questão da autobiografia precisa ser considerada a partir de algumas peculiaridades, o mesmo acontece no que diz respeito à escrita de memórias. A primeira reflexão que se faz necessária aqui é sobre o que seria um registro de memórias. Freud, em suas primeiras publicações, faz equivaler o aparelho psíquico a um aparelho de memórias. Ou seja, como algo que retém algumas impressões que podem ser mais ou menos nítidas, associadas ou não a palavras. Essas impressões são constantemente atualizadas e modificadas por outras e isto se deve ao modo de funcionamento do aparelho psíquico, particularmente do inconsciente, que é o de se fazer apresentar a partir de deslocamentos e condensações. A carta 5222, escrita em 6 de dezembro de 1896, é o texto paradigmático para pensarmos essa temática, inclusive porque o aparelho psíquico é aqui denominado aparelho de memória. Freud afirma que os traços de memória estão sujeitos a rearranjos, sofrendo de tempos em tempos uma retranscrição. “A memória não se faz presente uma só vez, mas se desdobra em vários tempos, em que ela é registrada em diferentes espécies de indicações” (FREUD, 1950/1892-1899, p. 254). O criador da psicanálise propõe então um novo esquema do aparelho psíquico: W_______ (I) Wz ________ (II) Ub_______(III) Vb _____Bews Onde encontramos;

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Freud correspondeu com Fliess, um médico que residia em Berlin, no período de 1887-1904. Essa correspondência foi publicada em 1950, depois do seu falecimento e nela podem ser encontrados os conceitos freudianos no momento de seu nascimento, assim como fragmentos da análise pessoal de Freud.

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W – Wahrnehmungen – referindo-se ao sistema perceptivo, afirma que a percepção e memória são processos mutuamente exclusivos, pois a percepção não conserva nenhum traço do que aconteceu. Wz – Wahrnehmungszeichen (índice de percepção) – seria o primeiro registro de percepção; esta primeira parte do sistema de memória é “totalmente incapaz de assomar à consciência e se dispõe conforme as associações por simultaneidade” (FREUD, 1950/18921899, p.255). Ub – Unbewusstsein (inconsciência) – seria o segundo registro, que corresponderia a lembranças conceituais; sem, porém, acesso à consciência. Vb – Vorbewusstsein (pré-consciência) – terceira inscrição ligada às representações verbais correspondendo ao nosso ego reconhecido como tal. Bews – Bewusstsein (consciência) Cada transcrição deveria inibir a anterior, só que, devido ao processo de recalcamento, a excitação é manejada segundo leis psicológicas vigentes no registro anterior, persistindo, então, um anacronismo. O recalcamento, processo estruturante do aparelho psíquico, seria uma falha no processo de tradução de um registro para outro. É fundamental dar-se conta também de que, entre a percepção e o sistema inconsciente, Freud se refere a um outro registro de memória, denominado Wz- (índice de percepção) que contém apenas marcas (traços, impressões) totalmente incapazes de acessarem à consciência. Portugal (2006), a partir dessa carta, afirma que a cisão instaurada pelo processo de recalcamento determina que “o eu só possa deparar com o que lhe está interditado por meio do que retorna em forma de restos, fragmentos” (PORTUGAL, 2006, p. 75). Em resumo, esse texto apresenta dois pontos que interessam particularmente a esta tese. O primeiro é de que há um registro que se faz apenas por marcas, às quais nunca se tem acesso. O segundo é que há uma falha que é constitutiva do aparelho psíquico. Essa

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falha implica numa impossibilidade de tradução fiel, ou seja, como acontece nas traduções de um idioma para outro, ela sempre vai implicar numa certa traição. Veja-se como Lobo Antunes refere-se a isso:

O passado é um país estrangeiro. Fazem coisas diferentes lá. E desse país estrangeiro que continua a existir paralelamente ao presente emerge de vez em quando um braço, uma frase, uma palmada enternecida que me poisa no ombro uma levezazinha esperançosa - Lembras-te de mim? (ANTUNES, 2006, p.282)

Por isso a noção de recalcamento traz em si o paradoxo de ser, ao mesmo tempo, presença e ausência: é algo que foi perdido, mas que insiste em ser buscado; que está sempre presente, embora seja impossível alcançá-lo. Veja-se um fragmento de crônica “António João Pedro Nuno Manuel”:

A infância atravessada é pior do que uma espinha: a gente engole bolas de pão e não passa.Talvez seja por isso que vou a Benfica uma vez por mês se tanto e que quando vou lá me sinto como um cão a procura de um osso que julga ter enterrado e afinal de contas não existia osso nenhum. Um osso que mesmo assim procuro até me arderem os olhos. Como me procuro nos álbuns de retratos. Como me procuro debaixo da minha cama. (ANTUNES, 1998, p.234)

Tomando agora um texto tardio de Freud, podemos ver que essa idéia persiste. Em “Construções em análise”, ao descrever qual seria a função do analista, Freud o compara ao arqueólogo, ou seja, àquele que constrói a partir de restos, pois algo está irremediavelmente perdido. Assim, o trabalho de ambos – analista e arqueólogo – consiste em “reconstruir por meio da suplementação e da combinação dos restos que sobreviveram” (FREUD,1937, p. 293). Uma boa intervenção do analista seria aquela que surpreende o analisando, levando-o a novas associações. Não é aquela que traz o já sabido, mas sim, aquela que o faz produzir algo novo. Parece que o mesmo raciocínio pode ser aplicado também ao escritor. Como foi estudado no capítulo um, o bom texto seria aquele capaz de tocar o leitor, levá-lo, de certo modo, a produzir a partir da leitura.

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Na crônica “Subsídios para a biografia de Lobo Antunes”, o autor brinca particularmente com a mistura das noções de fato e ficção a partir de um narrador, ao mesmo tempo adulto e criança, que relata as recordações de um eu menino apaixonado pelas atrizes de cinema, com a seriedade de uma criança incapaz de avaliar a impossibilidade de conquistar atrizes tais como Lana Turner ou Anne Baxter. Essa é uma das poucas crônicas em que o narrador refere-se com ternura à mãe, de quem o menino se aproxima. De um modo geral, nas crônicas, a mãe costuma ser descrita como inacessível. Apesar de mais atenta ao tricô, a mãe acolhe o chamado da criança e entra, já pedindo para sair, no mundo de fantasias eróticas do menino: “-Se não paras com essa vida de play boy engano-me no pulôver.” Nesse momento, pode-se suspeitar que a mãe seria, no final das contas, a grande atriz inalcançável, mulher inatingível, a quem o narrador menino gostaria finalmente de impressionar e ser reconhecido por suas conquistas, para se sentir amado por ela. No término da crônica, a fantasia do passado invade o presente e o narrador manda, através dos leitores, um recado para a Lana Turner de sua infância:

Se a encontrarem diga que estou arrependidíssimo e que peço desculpa. Digam também que telefone para a casa dos meus pais: deve estar por lá um miúdo de anel de bolo rei no dedo que recebe a chamada. (ANTUNES, 2002, p.52)

A contribuição de Lopes (2003) ao defender o conceito de memória excessiva é muito proveitosa, pois a crítica caminha em direção parecida e faz acréscimos às afirmações de Freud. Seria através da memória excessiva que o real poderia renascer, como uma tensão voltada para algo antes do sentido, para o acontecimento, ou, nos termos que tem se defendido aqui, para o real. Ao analisar o poema “A poeira levada ao vento”, de Joaquim Manoel de Magalhães, conclui que o que se narra do acontecimento não é algo encerrado no passado:

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“aquilo que se actualiza nele e permanece inactual depende da faculdade de dar sentido às sensações, isto é, de construir o recordável delas” (LOPES, 2003, p.61). A recordação, continua a autora, seria, sobretudo, o vazio da recordação, e a linguagem um abrigo para esse vazio. “O instante do acontecimento é por isso um instante cindido – o irreparável da perda é o que se transfigura em beleza e assim sobreviverá na condição de perdido e presente.” (LOPES, 2003, p.62). A recordação seria então vestígio do acontecimento, mas não como a cinza seria vestígio do fogo, e sim como potência ritmizante, aquela que coloca o sentido em suspensão. Na crônica “O próximo livro”, o narrador descreve as mudanças que se passam em seu eu, “zonas da minha cabeça deixam de me pertencer, vagueiam ocupadas não sei bem com que, a mão de tempos a tempos mexe-se sozinha como se escrevesse.” (ANTUNES, 2006, p.225). A escrita de um novo livro é antecedida por uma perda de si, a noção de eu se dilui, e o corpo é descrito como se estivesse possuído por algo exterior. A relação com o mundo exterior também, evidentemente, fica alterada:

uma indiferença em relação ao quotidiano, na cara da barba da manhã, não feições inesperadas, as minhas, porém como que boiando na pele (barbeio quem?) A impressão (difícil explicar isso) De me recapitular, me passar em revista, colecionar inutilidades, frases truncadas, ditongos, uma ondulação que vai se precisando, crescendo em cada ondulação letras (não palavras, letras, por enquanto não palavras, letras). (ANTUNES, 2006, p.226)

Na medida em que se des-possui, algo novo, ainda desconhecido e disforme, passa a ser gestado. Aqui a palavra letra lembra o sentido dado ao termo por Lacan, ao situá-la num litoral entre o simbólico e o real. A experiência descrita na crônica também parece aproximarse do que Lopes denomina acontecimento, aquilo que teria “a força do milagre, que faz sobreviver arrancando quem escreve, quem lê, de ‘milagres mortos’” (LOPES, 2003, p.63).

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Em termos psicanalíticos pode-se dizer que trata-se da vivência de estranheza, daquilo que produz efeitos de inconsciente. Por isso, continua Lopes, o texto poético é uma memória que não se extingue, porque ela é dinâmica e ativa; por ultrapassar o criador, ela contém um potencial infinito de memória, e não apenas as recordações do autor. Memórias que abrem “corredores para as emoções” (LOPES, 2003, p.63) e por isso o que vale nelas é a possibilidade de produzir efeitos no leitor. Como se pode perceber, essas ponderações são condizentes com o que diz Seixo ao referir-se à dimensão intersubjetiva do texto de Lobo Antunes. Só que, de acordo com a psicanálise, esse sujeito não é o da consciência, mas esse que surge na despossessão de si mesmo, no apagamento do eu. Essa memória excessiva apresenta-se como uma falha do anterior à linguagem (algo equivalente ao sistema WZ proposto por Freud), e isso faz com que a memória seja inseparável da imaginação e que “para o poeta não exista um passado a conservar na memória, mas um passado sempre a se reencontrar, a se reinventar” (LOPES, 2003, p.76). Na mesma crônica citada acima encontramos:

- Deixa-te de fantasias líricas Que me fez encontrar, ainda de calções, o resto de destino em falta. E comecei de imediato a escrever, ou seja, a tocar piano nas nuvens, caminhando de livro em livro como os elegantes de pedra em pedra para não sujarem as calças. (ANTUNES, 2002, p.123-125)

O título da crônica: “Assobiar no escuro”, já chama nossa atenção, pois já aí se inscreve algo de fantasia e de imprecisão. A imaginação e a escrita constituem o instrumento para buscar aquilo que falta, mas, se a escrita é da ordem do impossível, ela equivale a tocar piano nas nuvens, caminho imponderável em relação a outros que, ironicamente, o narrador denomina de elegantes, que buscam a segurança das pedras, do chão firme, para não se sujarem.

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O que retemos na memória nunca é constituído só de fatos; nossas lembranças constituem um misto de fatos e fantasias que são continuamente alteradas pelo nosso presente. Na verdade, o que faz a ligação dos fios do tempo, diz-nos Freud (1908), é o desejo. Assim, o próprio processo psicanalítico não pode ser visto como um tempo de rememoração. A lembrança que cada um tem de si mesmo é também uma ficção. Essa ficção, fundamental por nos dar uma certa moldura identitária, nos fixa, a partir de uma experiência inassimilável pela palavra, chamada por Freud de experiência traumática. O processo de memória se constitui a partir de algo impossível de representar e que aponta para o insondável do recalque originário, vazio inaugural do aparelho psíquico. Por isso, em última instância, o que seria o passado senão esse vazio inaugural em que tudo se perde? É diante desse inassimilável que o aparelho psíquico e a noção de eu se constituem. Assim o eu será sempre ilusório, vestimenta que cobre o que não pode ser representado pela palavra. A linguagem se constrói em torno de um vazio. Na crônica “Minuete do senhor de meia idade” pode-se ler:

Os dias, as semanas, os meses deslizam uns a seguir aos outros, devagar primeiro, depressa depois, tudo junto por fim, e eis a vida em cacos nos linóleo, um único pires completo e o resto bocadinhos, o único pires completo é alguém que não distingo a dizer-me adeus de uma varanda ou assim, um parapeito com sardinheiras, julgo que o mar ao longe, o único pires completo sou eu a voltar para casa Mas não me lembro da casa Eu que não me reconheço naquela casa, naqueles olhos, naqueles gestos desinteressados de mim Mudei tanto O único pires completo é ter cinqüenta anos e tanta coisa quebrada à volta, trazer a pá e a vassoura, deitar a vida no balde, limpar com a esfregona... (ANTUNES, 2002, p.85-86)

As lembranças são equiparadas a cacos e paradoxalmente o que está completo é aquilo que não se pode reter. O eu é apresentado ironicamente como completo, pois padece de estranheza e não se reconhece. Quebrado está o eu, pois quebrado está o mundo a sua volta,

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na impressão de abandono. Não só o passado é constituído de fragmentos, mas também o presente, quando se tem tanta coisa quebrada à volta. Constitui também contribuição da psicanálise para este estudo a idéia de que a noção de passado é, a partir do conceito de a posteriori, continuamente modificada pelo presente. E a criação? Freud (1908) levanta a hipótese de que, na criação, haveria o mesmo entrelaçamento de tempos como ocorre com o processo de memória. Ou seja, para o escritor, uma experiência no presente desperta uma lembrança de uma experiência anterior, da qual se origina um desejo que encontra realização na obra criativa. Esta revela elementos do presente e da lembrança antiga. Aqui vale citar a crônica “Elogio do subúrbio”, marcada por uma nostalgia da infância:

Não há pavões nem cegonhas e contudo a acácia dos meus pais, teimosa resiste. Talvez que só a acácia resista, que só ela sobeje desse tempo como o mastro, furando as ondas de um navio submerso. A acácia basta-me. Arrasaram as lojas e os pátios, não tocam o Papagaio Louro no sino, mas a acácia resiste. Resiste. E sei que junto ao seu tronco, se fechar os olhos e encostar a orelha ao seu tronco, hei de ouvir a voz da minha mãe chamar _ Antóóóóóóóóónio E um miúdo ruço atravessará o quintal, com um saco de berlindes na algibeira, passará por mim sem me ver e sumir-se-a lá em cima no quarto. (ANTUNES, 1998, p.15)

O narrador busca, como um náufrago, algo do passado no qual possa se agarrar, no momento em que sente que quase tudo está perdido. A árvore da infância é o mastro que pode trazer de volta vivências do passado, fazendo reviver a criança que teria sido. A lembrança do passado tem força suficiente para trazê-lo vivo para o presente, deixando assim de ser passado. Com isso, quer se lembrar que, segundo Freud, uma obra literária não pode ser vista apenas como uma representação do passado, pois, a memória não é um arquivo, mas um constante processo de reinvenção, o que nos remete novamente à crônica

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“Província”: “Deve ter sido assim. Ou se calhar um bocadinho diferente, tanto faz. Ou se calhar nada disto e tanto faz também. Quem vai se interessar, tirar a limpo, perguntar-me?” (ANTUNES, 2002, p.65). Considerada, a partir do pacto autobiográfico, a invenção com que se constroem as lembranças na literatura não interessará ao narrador nem ao leitor conferir a veracidade e nem mesmo a verossimilhança dos fatos relatados. Na crônica “Não foi exatamente assim, mas faz de conta” a estratégia da narrativa é o pacto da ficção. Na cena encontram-se de novo o narrador criança/adulto e seus avós. O avô é descrito, a partir do imaginário infantil, como um ser “cuja presença era uma silenciosa ausência que cheirava a brilhantina.” (ANTUNES, 2002, p.12-13). A figura do avô é mítica, “mais dado a coisas sem peso e à falta de substância da matéria”: ele passava o tempo, sentado na poltrona, em silêncio, fabricando “nuvens com a boca” (ANTUNES, 2002, p.14), segundo o narrador, como uma forma de “tecer o outono.” (ANTUNES, 2002, p.14). A velhice do avô traz subitamente a imagem da própria velhice do narrador. Como o avô, o narrador/adulto afirma que usa aparelhos para surdez e, questionando a noção de progresso, diz que os arqueólogos do futuro irão pensar que “andamos para trás em relação à época das galeras” (ANTUNES, 2002, p.15). Kehl (2001), ao prefaciar o livro de Ana Costa sobre memória e transmissão, lembra que, para a psicanálise, a memória tem pelo menos duas funções: a primeira é a que dá consistência ao sujeito, permitindo que ele se reconheça. Inscrita no corpo a partir da intervenção do Outro, ela confere ao sujeito um lugar que lhe parece suportado por uma verdade eterna que lhe traz uma certa garantia de identidade que só vacila quando algo desse lugar lhe escapa, ou se desloca. Essa memória dispensa qualquer rememoração, ela já está registrada nos nossos corpos e organiza a nossa relação com o mundo. A outra é a memória da rememoração e da transmissão da experiência. Ela diz respeito ao que é impossível de dizer e é justamente esse impossível que faz com que essa tarefa seja

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interminável. O saber da experiência só se transmite onde há falha. Ele não garante que o sujeito conheça o que representa, uma vez que “o inconsciente é um saber que não se sabe e por isso se repete, se atualiza, na relação.” (KEHL, 2001, p.15) Memória e linguagem são indissociáveis, assim é impossível estabelecer a precedência de uma sobre a outra, pois ambas se originam da relação do sujeito com o campo do Outro: “é no ato de narrar que o vivido se constitui como experiência” (KEHL, 2001, p.22). Essa narrativa de memórias não explica nada, compõe-se de fragmentos e de brechas que produzem o mesmo efeito no ouvinte. É pelas brechas que ela se transmite e se renova. Pode-se constatar aqui uma coincidência com as ponderações de Seixo (2002) sobre a inutilidade de se averiguar a veracidade dos relatos que parecem memorialísticos, ou seja, o que interessa nas memórias são os efeitos que a enunciação pode produzir no leitor. A riqueza da transmissão não está nos dados objetivos que apresenta, pelo contrário, as brechas e os vazios do texto são mais ricos em termos de possibilidade de tocar o leitor. Referindo-se ao texto clássico de Walter Benjamin (1987c) sobre o narrador, Kehl afirma que o narrador clássico de Benjamin seria aquele capaz de transmitir a experiência, ao recriá-la. A autora lembra o narrador do romance, apresentado por Benjamin como aquele que não tem uma verdade a transmitir, pois perdeu a crença na tradição e sua experiência é individual. O que transmite é sua perda de certezas, não tem um saber que possa balizar o narrador nem o leitor. Trata-se exatamente do que faz Lobo Antunes em suas crônicas; elas estão repletas de vazios que produzem o que Barthes chama de efeitos de real, desde a apresentação de detalhes aparentemente sem importância introduzidos no meio de um relato, até à fragmentação e a mistura dos tempos. As crônicas citadas mostram que a narrativa de memórias nas crônicas de Lobo Antunes é constituída muito mais de “deslembranças”, ou seja, de falta de certezas, lacunas e fragmentos contraditórios que, como num processo de associação livre, vão se colando de maneira desordenada:

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Curioso lembrar-me melhor dos castanheiros que da minha família. Havia um castanheiro Dois castanheiros Na parte da frente da casa, quatro castanheiros do lado direito, dois mais a frente. Se algum ouriço caía sozinho ia abri-lo com uma pedra, magoava-me sempre nos picos, pelava as castanhas Nunca conseguia pelar completamente as castanhas E comia a carne branca que nem sequer gostava enquanto a cozinheira anunciava, alarmada, que eu ia sofrer dos intestinos. O irmão dela tinha se suicidado num poço, o que a transformava para mim, numa criatura que me assombrava, como se a morte do irmão distinguisse um pouco para ela e metade da cozinheira, embora ralhando-me, se achasse tragicamente morta. Quando ela casou com um bombeiro pensei logo que o bombeiro ia me meter num saco para fugir com ele e vender-me aos ciganos. De tempos a tempos o bombeiro passeava-me na carroça. Usava colete e chamava-se Carlos. Travava-se a carroça com uma manivela empenada. A mula da carroça fervia de moscas. Na outra ponta da mula, onde acabavam as moscas, nascia um par de orelhas que giravam. Falava e elas Trucla Viradas para mim. Não deve ter sido assim: foi assim. (ANTUNES, 2002, p. 65)

Além da descontinuidade no enunciado e na enunciação, da impossibilidade de distinção entre lembrança e fantasia, este trecho destitui o suposto paraíso do universo infantil, que mostra-se povoado de tristeza, solidão: “curioso lembrar-me melhor dos castanheiros que da minha família (...) magoava-me sempre nos picos” (ANTUNES, 2002, p.65), assim como de fantasias de morte e de destruição. Castello Branco, no livro A traição de Penélope (1994), trabalha a noção de memória na literatura a partir da psicanálise, de Bachelard e de Deleuze. Em contraposição à memória tida como resgate de um passado ilusoriamente pensado como intacto, a autora indaga: de que modo o sujeito, ser de linguagem, se insere na percepção e construção da temporalidade? Parte do pressuposto de que a tarefa da memória constitui um paradoxo: recuperar o desde sempre perdido, pois só se encontra como perdido e só é perdido como reencontrado. Ali onde o passado se quer presente e o presente é sempre passado é que o futuro se introduz como uma determinante, como uma lei do que será lembrado (é só no revivido que o vivido se deixa vislumbrar). O futuro está ali, nesse absurdo lugar de um tempo sempre presente que se esvai.

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Segundo a autora, os textos literários podem revelar dois tipos distintos de concepção de escrita da memória: um que vê o tempo como contínuo e linear em que o sujeito encobre as lacunas e a não coincidência entre o tempo vivido e o lembrado, buscando-se como um eu inteiro, integrado, restaurando a rachadura que o tempo e os signos lhe impuseram. Essa concepção do tempo como um contínuo é típica do raciocínio cartesiano e existem vários textos memorialísticos em que se pode perceber essa tentativa do autor de suturar as rasuras do vivido. Funda-se assim o gênero memorialista, cuja escrita faz uma trajetória de retorno ao passado para capturar o vivido e trazê-lo relativamente intacto para o presente narrativo. Essa ilusão de resgate, para subsistir, precisa desconsiderar a dimensão da linguagem, pois só através dela as imagens podem oferecer-se ao pensamento que as recorda. Numa outra concepção, pode-se compreender que o tempo constrói-se de descontinuidades, saltos e rupturas e o processo de memória se dá nas malhas desse tecido. Assim, o processo de memória não pode ser entendido apenas como recomposição de uma imagem passada, mas também enquanto decomposição, rasura de imagem. O passado não se conserva inteiro, constrói-se a partir de falhas e ausências. Na primeira versão, propõe Castello Branco, o sujeito da escrita se apresenta como um ser inteiro e produz uma ilusão referencial reveladora de uma verdade plena e apreensível. Já na segunda, o sujeito se mostra estilhaçado, cindido. São escritas do eu, que estão sempre a questionar a sua consistência. Como se saltasse da interrogação: “Quem sou eu?”, para chegar a outra, mais radical: “Sou?” Um texto de memória, afirma Castello Branco, pode então ser visto como um texto de perda que se escreve às escapadelas. Voltar-se para as memórias seria como abrir uma porta para o nada. Por isso, debruçar sobre esses textos não será mergulhar em suas profundezas buscando uma verdade última que seria nomeável, mas passear por suas superfícies. A autora acredita que a escrita de memórias inventa, no lugar do morto, uma outra coisa, uma outra

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estória . Essa seria uma escritura do estranho. Veja-se o impacto do narrador ao se deparar com fotos antigas: O pai da minha avó perdeu os sapatos, os tornozelos, acho que um terço das calças. Três fantasmas remotos, feitos de esquecimento e silêncio. Sobretudo de silêncio, a diluírem-se devagar, indiferentes, numa nuvem confusa, recuando para além da memória, onde não os posso alcançar. (ANTUNES, 2006, p.17).

Se em outras crônicas o texto é tecido para trazer de volta vivo o passado, aqui o passado registrado nas fotos traz algo de morte e de silêncio. O narrador vê seus entes queridos diluindo, apagando-se e, por não poder alcançar o que busca, a vivência é de perda. Consoante às ponderações freudianas, ao questionar a linearidade do tempo, Castello Branco aborda a seguinte questão: como se haver com os domínios da escrita que se desvia do domínio da re-presentação e faz tocar a parte intangível do real? Se a memória pode ser vista como um movimento em direção ao “já não é”, ela caminha inevitavelmente para o “ainda não”, instância futura, que só pode ser presentificada pela linguagem. Isso porque a memória não é só uma construção do passado, mas também é movida pelo futuro. Nessa proposta, e nela encontramos Lobo Antunes, o tecido do tempo é descontínuo e o sujeito da escrita se mostra fraturado, sabendo-se efeito de superposições de signos e de registros temporais distintos. Veja-se, por exemplo, este fragmento de crônica: “A verdade é que parte do meu futuro ficou atrás de mim. Na quinta feira, que é quando meus irmãos se reúnem na casa dos meus pais, vou até lá buscá-lo.” (ANTUNES, 1998, p.299) pode-se constatar aqui que não se pode diferenciar passado de futuro, realidade de ficção. Lobo Antunes diz, em entrevista, que: “a imaginação é a maneira como se arruma a memória” (BLANCO, 2002, p.114). Certamente por isso, Reis aponta como uma característica importante das crônicas “uma plurestratificação da incidência temporal (passado-presente) (...) visando ilustrar um universo complexo e atravessado por tensões irresolvidas” (REIS, 2003, p. 30).

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Essa mistura de tempos está na crônica “A velhice” que relata, no tempo presente, o impacto da constatação da passagem do tempo nos sinais do espelho, em que a imagem revelada é um duplo, ao mesmo tempo estranho e familiar. Evidenciam-se também as alterações observadas nas pessoas em volta, as mudanças dos gostos e valores do narrador. Na crônica, os três tempos se misturam: um presente em que o narrador se estranha, um futuro que se apresenta como marcado por solidão e perda: “quando der por mim encontro meu sorriso na mesinha de cabeceira a troçar-me num copo de água com trinta e dois dentes de plástico.” (ANTUNES, 1998, p.39) e que o tempo passado não se foi: Devo estar a ficar velho. E no entanto sem que me dê conta, ainda me acontece apalpar a algibeira a procura da fisca (...) Ainda queria que meu pai me comprasse na feira de Nelas um espelhinho redondo com a fotografia de Ivone Carlo do outro lado. Ainda tenho vontade de escrever o meu nome depois de embaciar o vidro com o hálito. (ANTUNES, 1998, p.40)

Há uma frase em que infância e velhice se tocam, e não sabemos a que tempo o narrador se refere: “se calhar daqui a pouco uso um sapato num pé e uma pantufa xadrez em outro.” (ANTUNES, 1998, p.39) É com um pé no futuro (ou no passado?) calçado com pantufas xadrez e outro no presente (usando sapatos) que a narrativa se constrói. No daqui a pouco do futuro, o que reina é o infantil, o futuro do presente é o passado. Como se o tempo verbal fosse um “agora eu era”, ou “agora eu serei”, ou “ontem eu sou”. A frase cheia de poesia que fecha a crônica é magistral para ilustrar essa sobreposição do tempo: “não sou um senhor de idade que conservou um coração de menino. Sou um menino cujo envelope se gastou.” (ANTUNES, 1998, p. 40). Também na crônica “Província” podem-se observar descrições do universo infantil como se fosse descrito por uma criança que se assombra com o tamanho e o poder que ela atribui aos adultos: “a minha avó entendia o meu receio do escuro. Entendia tudo. Era tão alta quanto os homens e toda a gente se calava ao ouvi-la.” (ANTUNES, 2002, p.65) A crônica é tecida por fragmentos de lembranças infantis, num universo marcado pela fantasia e por

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misturas de lembranças com dados imaginários, numa superposição de tempos: “o meu pai adoeceu em janeiro. Dava-se-lhe um copo de vinho e serenava. Açúcar e mel no vinho (...) Chegando a minha altura de adoecer deitam-me açúcar e mel no vinho” (ANTUNES, 2002, p. 67). Do passado vai-se ao futuro, numa visão de sobreposição dos tempos. Essa descontinuidade do tempo da memória é explicada por Bachelard (1988) que, em Dialética da duração, desenvolve a idéia de que o tempo é lacunar e que sua continuidade deve ser vista como uma construção do sujeito diante da angústia do ato de reviver o desaparecido, de enfrentar a morte. Assim como o tempo se constitui de lacunas, a causalidade se dá através de saltos, não sendo possível, para o sujeito, verificar o desenrolar de uma causalidade. O tempo, para Bachelard, não é exterior ao sujeito, é resultado da maneira como ele aí se inscreve. O filósofo afirma que: Não há como fazer coincidir o chamado tempo do vivido com o tempo do revivido, com o tempo construído pela memória e, portanto, pela linguagem: qualquer gesto de rememoração se efetua sempre a partir de um fosso temporal intransponível. É precisamente na linguagem que pretende descrever, criar a continuidade almejada, que essa continuidade se rompe: o signo se erige sempre a partir do que já não é. (BACHELARD, 1988, p. 29)

O passado é um lugar inatingível, constituído não pelo que existe, mas pelo que insiste e ecoa no presente. O passado só existe ao ser recuperado e só se pode recuperar o que é tido como perdido, que só se dará a conhecer como re-presentação, presença de um mesmo que é também um outro. O processo de escrita da memória efetua-se assim a partir de um atrito de tempos: ao presentificar o passado, não só se assinala a lacuna entre esses dois tempos, como também se constrói uma terceira instância, futura, posterior, que nasce do processo mesmo da linguagem. (BACHELARD, 1988, p. 31) Na crônica “Eu, há séculos”, Lobo Antunes apresenta fragmentos de lembranças de um narrador que descreve, em flashes, cenas infantis:

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Sentava-me no chão ouvindo a terra, os grilos que costuravam o silêncio cerzindo pedras e sombras, cerzindo as nuvens contra o telhado da casa e a voz da minha avó num dos quartos de cima, de modo que mal os grilos se calaram tudo estava certo, as coisas em harmonia umas com as outras, a minha respiração com elas e então fechei os olhos e por um momento sem tempo fui feliz. (ANTUNES, 2002, p.45)

O passado é marcado pela imprecisão que a escritura busca cerzir de maneira desordenada, mostrando, num movimento metonímico, os buracos do tecido, num silêncio que costura pedras e cerze nuvens no telhado. A criança que surge na cena também não é inteira, nem o mundo que ela tenta, em vão apreender: “um cheiro inacabado de menino, gestos inacabados, mãos que tentavam apreender o contorno de uma laranja e os poros do barro.” (ANTUNES, 2002, p.45). Esse passado inacabado se faz presente no agora: Durante séculos não me tornei adulto. A seguir sucedeu não sei o que e fiquei deste modo, como agora. Mas isso aconteceria daí a muitas semanas, tantas que não sei dizer se aconteceu de facto. Acho que não: se fico quieto lá estão os grilos costurando o silêncio, cerzindo as luzes contra o telhado da casa, por um momento sem tempo, sou feliz. Aceno-me no espelho - Adeus meu homem e, fechando uma pedra de mica na mão, alegram-me os bois de regresso desde além do pinhal. (ANTUNES, 2002, p.47)

O narrador destitui a linearidade do tempo, assim como a ilusão de que o ser humano amadurece, ou de que adquire domínio sobre si ou sobre o mundo a sua volta. A passagem do tempo não faz com que mundo mude, dentro de cada um, continua a habitar o infantil. Deleuze (1987), ao refletir sobre a questão da memória em Proust, conclui que o tempo perdido não é simplesmente o tempo passado, mas o tempo que se perde numa narrativa que não vai a lugar algum, não remete a nenhum grande sentido oculto no enunciado, mas aos sentidos minúsculos da escrita, disseminados na enunciação. O tempo da memória em Proust localiza-se no tempo do presente narrativo. Essa conclusão de Deleuze em relação a Proust em sua Busca do tempo perdido pode ser generalizada para outros textos de memórias. O filósofo acredita que: Se as reminiscências são metáforas da vida, as metáforas são reminiscências da arte. Ambas, com efeito, têm algo em comum: determinam uma relação entre dois objetos

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inteiramente diferentes, para subtrair às contingências do tempo. (DELEUZE, 1987, p.55)

O que a obra revela não se localiza no tempo. Também não se trata de uma verdade nomeável, representável. Ela não faz parte do mundo simbólico, não está previamente escrita. Além disso, o mundo expresso na arte não se confunde com o sujeito e nem existe fora do sujeito que o exprime. Ela não se reduz a uma subjetividade psicológica, é de uma outra ordem: "qualidade desconhecida de um sujeito único" (DELEUZE, 1987, p.43). Castello Branco (1994) pergunta-se então se, a partir de Deleuze, o texto não seria sempre uma presentificação do presente, pois este é o único que efetivamente existe; e, paradoxalmente, só tem no passado e no futuro suas dimensões, pois é também aquilo que passa, aquilo que se esvai no tempo constituído. É que o tempo que vale para a literatura é o da enunciação, o da escrita, em que se pode jogar com a temporalidade e o paradoxo. Em “A literatura e a vida”, Deleuze afirma que “escrever não é certamente impor uma forma de expressão a uma matéria vivida.” (DELEUZE, 1997, p.11) A literatura estaria muito mais do lado do informe e do inacabamento. A escrita está sempre em via de fazer-se. O filósofo considera que pensar na escrita como reprodução da memória é uma concepção infantil de literatura, “pecar por excesso de realidade ou de imaginação é a mesma coisa” (DELEUZE, 1997, p.12). Voltando às considerações de Deleuze, sua tese é de que, para se instalar, a literatura precisa seguir outra via, descobrindo, sob as aparentes pessoas, a potência de um impessoal, uma generalidade que é uma singularidade no mais alto grau. É preciso que as próprias lembranças tomem uma dimensão maior, capazes de afetar também quem lê. De maneira condizente a essas ponderações, Lobo Antunes, em entrevista, diz a Blanco que: A história é o menos importante, é um veículo de que me sirvo (...) a intriga não me interessa, o que queria não é tanto que me lessem , mas que vivessem o livro. As emoções são anteriores às palavras e o repto é traduzir essas emoções, tentar que as

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palavras signifiquem essas emoções. É um desafio impossível e aquele que creio que se deve tentar. (BLANCO, 2002, p.125)

Além da história, entre suas linhas, há uma outra verdade que se desenha, uma verdade da ordem do pulsante, um testemunho da pulsão do real (REIS, 2004), que diz respeito ao autor e ao leitor. A literatura, acredita Deleuze, “é uma passagem de vida que atravessa qualquer matéria vivível ou vivida” (DELEUZE, 1997, p.11). Por isso a escrita seria da ordem do devir. O devir diz respeito ao inesperado, ao novo; por isso, o que importa no devir é o movimento, o tornar-se. Não significa progredir ou regredir de acordo com uma série, também não se trata de filiação em que é gerado um semelhante. O devir é uma espécie de aliança que coloca em jogo planos diferentes; por exemplo, entre um homem e uma criança encontramos um devir criança, entre um homem e uma mulher, um devir mulher. Assim, o escritor é visto como um feiticeiro, porque escrever é ser atravessado por estranhos devires. Por ser sempre um vir a ser, o devir não é atingir uma forma pela identificação ou pela mimese. Sua zona é a da indiferenciação onde se atingem imprevistos. Há uma crônica de Lobo Antunes em que se pode identificar essa indiferenciação. O texto tem um tom poético e o nome parecido com um dos romances do escritor. Trata-se de “Não entres por enquanto nessa noite escura”. Nela encontra-se uma referência a um tempo/espaço em que a felicidade seria possível, em que o passado e o futuro se entrelaçariam e em que o presente é visto como inabitável. Há uma oposição entre o mundo natural, em que plantas, bichos, pedra, sol, lua viveriam em harmonia, e o mundo adulto, da palavra, da cultura vistos como: acontecimentos da outra margem da tristeza, palavras cujo sentido ignoravas dado que o vento detinha o exacto tamanho do teu corpo e não consentia qualquer sombra do sangue, qualquer inquietação que desviasse os dedos do caminho do sol. (ANTUNES, 2002, p.38)

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A indiferenciação remete para um tempo mítico em que a paz da natureza se opõe à violência da civilização, numa fuga necessária para o reino da fantasia, para cobrir/evidenciar o insuportável: Pintavas as pálpebras da mesma forma que, em pequena acrescentavas pestanas ao desenho do sol. E bochechas. E cabelo. E uma nuvem repleta de cerejas. Apenas esquecemos, e de termos esquecido vem a raiz do espanto. Nuvens com cereja sim, de qualquer nuvem (toda criança o explica e é natural) podemos retirar o necessário para habitar a terra pelo lado da pele. No outro lado mora o feio baldio do que ignoramos: entulho como pátria, como ossos, como os amargos cadáveres da inveja, tudo aquilo em que nunca tropeçaste, de que nunca adivinhaste, por um momento, o rastro: eras tão nova ainda, serás sempre tão nova agora que em redor do teu nome é tudo cinza e ninguém se demora junto a ti. Mas agrada-me pensar que continuas a crescer nos limoeiros de outro verão e te debruças em Angola para escutar a terra.” (ANTUNES,2002, p.38)

A frase que abre a crônica “Fosse qual fosse a idade que tinhas eras tão nova ainda” (ANTUNES, 2002, p.37), sofre variações ao longo da narrativa, mas reitera a instabilidade e a impossibilidade de fixação, por se referir a um tempo e a um personagem impossíveis de situar. Por exemplo: “faltavam no relógio as horas de seres grande”; “serás sempre tão nova agora que em redor do teu nome tudo é cinza” (ANTUNES, 2002, p.38). Por isso, o narratário também é inatingível: “se eu pudesse falar-te, se as minhas mãos, se a minha voz pudessem tocar-te: não me escutas, é demasiado cedo para que tu saibas que eu existo”(ANTUNES, 2002, p.38). Através desse narratário, delineia-se um devir criança, marcado pelo modo infantil de apreender o mundo, numa ânsia de captar a própria coisa, quando “nem todas as coisas possuíam nome nesse tempo: faltavam páginas no dicionário do avô (...) moravam grandes mistérios nas gavetas.” (ANTUNES, 2002, p.37). Enfim, trata-se de tempo não localizável nem nomeável, quando a felicidade seria possível, em contraposição aos tempos de horror da guerra. Apesar de inatingível, o narrador continua em busca desse ser/tempo impossível: “A única forma de te ser fiel é costurar a vida, lentamente, pelo avesso da dor, inventar um peito

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onde possas deitar-te, cobrir com lenços grandes os espelhos a fim de que nada impeça o teu regresso.” (ANTUNES, 2002, p.39). Essa poética construção evidencia que costurar a vida pelo avesso da dor não é negá-la, mas inventar algo a partir dela, criando um peito/espaço de aconchego em que se possa velar com lenços o que pode ser ameaçador. Entretanto, sabemos que o véu tem a propriedade de esconder e mostrar ao mesmo tempo. Aqui podemos ver evidenciada também a própria função da escritura. Por tudo que foi apresentado neste item, pode-se concluir que a noção de que a memória pode ser resgatada pela escrita constitui uma falácia. Na verdade há escritas de memórias que tentam suturar a fragmentação e outras que, pelo contrário, fazem questão de evidenciá-la. Essas posições antagônicas também supõem dois tipos de sujeito da escrita: um que quer se mostrar inteiro e outro que se sabe dividido. Quando se admite que a memória é estruturalmente falha, a imaginação entra como um ingrediente que irá fazer uma ponte entre as diferentes dimensões do tempo: passado, presente e futuro. Para os teóricos a que aqui recorremos, a admissão da falha, apresentada tanto nos enunciados quanto nas enunciações, irá mostrar um tipo de literatura que é capaz de tocar o outro não pelo que preenche, mas pelo que cava de vazios, que são admitidos pelo escritor, apresentam-se no texto e tocam o leitor.

2.3 A repetição do mesmo e do novo Outra temática fundamental a ser verificada, quando se trata das circunvoluções do tempo nas crônicas de Lobo Antunes, diz respeito à repetição. Isto porque a reiteração é uma constante nesses textos em que cenas e personagens retornam constantemente. Também várias frases se repetem, sendo a temática praticamente a mesma. Tem-se a impressão de que Lobo Antunes está escrevendo sempre a mesma coisa. O narrador da já citada crônica “Antonio 56 ½” confessa: “jogara tudo no acto de escrever, servindo-se de cada romance para corrigir o anterior, em busca do livro que não corrigiria nunca.” (ANTUNES, 2002, p.17)

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Algo semelhante afirma em entrevista a Blanco: “um livro nunca está terminado, fica definitivamente inacabado. Quando começamos um livro novo, pensamos em corrigir o anterior porque estamos mais dependentes dos seus defeitos” (BLANCO, 2002, p.91) Essas citações são preciosas para introduzir o tema da repetição, pois apontam tanto para a dimensão de repetição do mesmo quanto de repetição do novo. O que é isso que sempre “pede de novo”? A premissa que rege esta tese é de que o que retorna é mais uma volta em torno de um real impossível de se dizer. O tema da repetição é caro para Freud. Ele se apresenta de duas maneiras em sua obra. A primeira indica que a repetição seria uma tentativa de elaboração. Se, como diz Freud (1909), as histéricas sofrem de reminiscências, é porque repetem, pela via do sintoma, aquilo que não pode ser assimilado. Assim a repetição desempenharia um papel importante tanto na relação transferencial como nas atividades sublimatórias, entre elas a criação literária. A repetição, nessa primeira versão, é tida como algo da ordem do simbólico, palavra que levaria à elaboração. Entretanto, na medida em que Freud caminha, passa a apontar para algo que se repete porque não é possível ser escrito, e que resiste à significação. De acordo com essa ótica, a arte literária seria uma constante e impossível “busca de um livro que não corrigiria nunca.” (ANTUNES, 2002, p.17) Essa segunda dimensão da repetição, no texto freudiano, pode ser encontrada de maneira mais evidente em: “Além do princípio do prazer” (1920). Aí, Freud vai apontar uma outra dimensão da repetição ao associá-la a uma compulsão. Lacan (1988b) destaca a compulsão à repetição como sendo a maneira que Freud teria usado para daí extrair o caráter de inadequação do desejo e da conduta humana em relação à ordem simbólica, apontando para algo que não se encontraria mais relacionado ao domínio da representação, mas sim ao

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registro do real. No livro 11, dos seus seminários, Lacan vai afirmar que a repetição é um dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Em sua leitura da obra de Freud, Lacan (1988b) recorre à contribuição de Aristóteles no que se refere às duas faces do acaso: automaton e tiquê. Automaton diz respeito à insistência dos signos comandados pelo principio do prazer, enquanto a tiquê, localizada além do principio do prazer, assinala o encontro com o real, encontro essencialmente faltoso. Mais tarde, em Lituraterra, como já referido no capítulo um, Lacan (2003) irá desenvolver o conceito de letra para se referir ao que excede à circunscrição da representação. Nos três livros de crônicas podem ser verificadas essas duas formas de repetição: uma que parece querer resgatar algo que foi perdido e outra que repete para evidenciar a impossibilidade do resgate. No último caso, a narrativa estaria sempre voltando ao vazio de onde veio. O que foi apresentado nos itens anteriores sobre autobiografia e memória ilustra essa ambigüidade de se buscar resgatar algo e, ao mesmo tempo, mostrar a impossibilidade disso pela própria construção narrativa. Essa busca insistente pode ser vista pela repetição de cenas dos romances nas crônicas, ou de reincidência temática em diferentes crônicas. Também se apresenta no que foi denominado de “chamamento da criança ausente”. Para ilustrar a repetição, foi escolhida a temática do espelho: por ser reincidente nas crônicas e por permitir ver evidenciado nelas a presença de automaton e de tiquê. Assim, em cada parágrafo da crônica “O coração do coração”, o narrador repete que o romance que gostaria de escrever seria aquele em que as páginas fossem espelhos. Dá diferentes justificativas para isso: a primeira é que, como espelhos, elas permitiriam que o leitor se visse, mas muito mais que ver-se de maneira harmoniosa, o narrador afirma que gostaria que esse leitor pudesse ver algo além: “não apenas ele próprio e o presente em que mora, mas também o futuro e o passado, sonhos, catástrofes, desejos, recordações” (ANTUNES, 1998, p.45). Ou

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seja, como está defendido até aqui, a literatura precisa ser capaz de afetar quem lê, isso é o que torna um texto digno de ser chamado de literatura. A literatura seria também um espelho em que o narrador poderia, mais que narrar a vida, encontrar a própria vida a acenar-lhe “sentada num parágrafo” (ANTUNES, 1998, p.45). No parágrafo “tropeçaria, à esquina de um capítulo, com os anos de Nelas” (ANTUNES, 1998, p.45) e outras memórias que deixariam de ser passado e ganhariam corpo pela via da escrita. Também como espelhos, as páginas teriam o poder de trazer: o meu rosto de agora e todos os rostos que tive até ao rosto de agora revisitados no Álbum do Bebé que ainda conserva, mumificado como a trança de um santo, um feixezinho de cabelos da criança, hoje morta, que fui, a olhar-me através dos séculos numa desconfiança acusadora, cabelos que evito tocar no receio de que se desfaçam em pó à maneira das flores de laranjeira das noivas antigas, e que ao desfazerem-se desapareça o que fui e as pessoas que amei com uma paixão sem igual... (ANTUNES, 1998, p.46)

É interessante notar aqui que a escrita traria consigo, não só o poder da vida, mas também o da morte. Poderia fazer com que o passado revivesse, e poderia também, ao tocá-lo, desfazê-lo. Mostra-se assim a fragilidade da noção de identidade, modificada e ao mesmo tempo semelhante à da criança que se foi um dia. As páginas espelhos poderiam trazer de volta os seres amados, as sensações e os terrores infantis: “o pavor de um Deus terrificante que me espiava emboscado na esperança de uma mentira, de um palavrão, de polegares disfarçados no bolso a tentarem pecaminosas manobras...” (ANTUNES, 1998, p.46). Seriam também capazes de presentificar toda a vida, a esperança e a incredulidade na própria vida e na escrita, apresentada como uma tarefa incessante e da ordem do impossível. Por isso, também estariam espelhados nele:

o adolescente que deixei de ser, afogueado de timidez e borbulhas, um homem aflito a penar o seu romance palavra a palavra até entregar ao editor que do outro lado da secretária o recebe como um dignatário eclesiástico aceita com benevolência pastoral a oferta de um crente (...) e ao alcançar a rua dou-me conta de que perdido o romance perdi uma parte essencial da minha identidade de modo que em casa principio a preparar os blocos para a história seguinte na pressa de refletir-me de novo no papel onde surge devagarinho uma esperança teimando em garantir-me que

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existem manhãs tão matinais que só por elas merece a pena de acreditar nem que seja nos políticos, esses patéticos administradores do efémero, nem que seja nos economistas, esses absurdos gestores do contingente, acreditar em todas as criaturas que baseiam seu prestígio numa insegura veemência e permanecer vivo. (ANTUNES, 1998, p.47)

Barradas, ao fazer um detalhado estudo sobre essa crônica, afirma que “a metáfora do espelho, recorrente na escrita de Lobo Antunes, ilustra as ligações complexas que o indivíduo estabelece com o mundo, problematizando a própria dificuldade de apreensão da realidade e da sua codificação na escrita.” (BARRADAS, 2004, p. 135). Assim, a escrita/espelho é uma forma impossível de re-petir, pedir de novo, a vida a partir da morte. Essa dificuldade se mostra, inclusive pela forma de construção narrativa, que se faz aos jorros, com poucas pontuações, não dando descanso ao leitor. O espelho também se apresenta em outras crônicas como uma forma de referir-se ao duplo e ao questionamento da identidade que o narrador se faz através dele. Freqüentemente, a imagem devolvida pelo espelho é de destituição, marcada por uma dualidade ou por uma partição de um eu que conversa consigo mesmo. De acordo com Freud, a presença do duplo no texto literário é um dos índices da presença do estranho. Isto porque “há uma duplicação, divisão ou intercâmbio do eu” (FREUD, 1919, p.293); pois, diante do espelho, o sujeito fica em dúvida sobre quem é o seu eu, ou substitui o próprio eu por um estranho. Para Portugal (2006), as formas do duplo mencionadas remetem aos três registros articulados por Lacan. O imaginário estaria associado às duplicações de imagens ideais, sósias, rivais, semelhanças em atos e delitos. A divisão diz respeito ao registro simbólico, apontando a estrutura de divisão do aparelho psíquico em inconsciente, pré-consciente e consciente. Já o real se apresenta quando acontece o intercâmbio do eu, quando o eu não se reconhece.

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A autora lembra ainda que o espelho é o parâmetro da exterioridade, pois oferece ao eu a chance de se ver inteiro ao preço de se reconhecer como um outro. A imagem que aparece no espelho é invertida e esse elemento impõe a diferença no registro do idêntico. “Por esse viés , aquilo que seria o mais conhecido e familiar, a própria imagem, vira estranho.” (PORTUGAL, 2006, p.89) Retomando as colocações de Schollhammer no capítulo anterior, surge a partir do duplo um quiasma entre uma visão que parte do sujeito que se olha no espelho e do olhar que emana do objeto, neste caso a imagem refletida. Várias são as crônicas de Lobo Antunes em que encontramos esse artifício de linguagem. Por exemplo, na crônica “Olá” pode-se ler: E de manhã lá estás tu no espelho da casa de banho à tua espera. Tu esse cabelo, esse nariz, as marcas sob os olhos? Tu. Demoras tempo a reconhecer-te que nem te imita os gestos, os faz ao mesmo tempo, não te troça. A maneira de ele lavar os dentes, a maneira de ele fazer a barba”(ANTUNES, 2002, p.81)

O título, uma saudação,

já aponta para o duplo, pois trata-se de um eu que

cumprimenta outro eu que é tratado na crônica por tu. Mais ou menos como Alice no país das maravilhas, o espelho não oferece uma imagem apaziguadora, pelo contrário, sempre que se refere a ele como desconhecido, o narrador das crônicas expressa uma sensação de estranheza, de não reconhecimento de si mesmo. De acordo com Freud, se, a princípio, o duplo pode parecer-nos assegurador da vida, acaba por se tornar

um anunciador da morte: é a própria imagem que se mostra

irreconhecível. Nessa crônica, a imagem duplicada no espelho não é reconhecida e apresentase fragmentada – cabelo, nariz, marcas sob os olhos. O outro eu do espelho, de tão estranho, deixa de ser um tu, pessoa com quem se fala e passa a ser nomeado como um ele, pessoa de quem se fala. Outro autor que trabalha o tema da repetição é Deleuze. No livro Diferença e repetição mostra que o cerne da repetição diz respeito à diferença, àquilo que não tem

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representação. Afirma que enquanto a generalidade se caracteriza pela semelhança e igualdade, a repetição remete à diferença entendida como o que não pode ser substituído, pois concerne a uma singularidade não trocável. “Repetir é comportar-se em relação a algo que não tem equivalente” (DELEUZE, 1988, p.21). Na linguagem poética, cada termo é insubstituível, por isso, só pode ser repetido. O que insiste na repetição é a diferença. Para defender seu ponto de vista, Deleuze recorre a vários autores, e, entre eles se encontra Freud, com o conceito de pulsão de morte. Para o filósofo, a grande virada do freudismo aparece em “Além do principio do prazer” (FREUD, 1920) onde se encontra uma consideração direta dos fenômenos de repetição. Curiosamente, a pulsão de morte vale como principio positivo originário da repetição, aí estando seu domínio e seu sentido. Eis porque a pulsão de morte, onde impera o além do princípio do prazer, é, antes de tudo, silenciosa – não é um dado da experiência – ao passo que o principio de prazer é ruidoso. A pulsão de morte vai se apresentar no texto literário a partir dos intervalos, dos não ditos, de algo que é dêitico e não apenas representado pela palavra. Deleuze se pergunta de que forma a repetição é afirmada e prescrita pela pulsão de morte. “A repetição é verdadeiramente o que se disfarça ao se constituir, e que só se constitui ao se disfarçar. Ela não está sob as máscaras, mas se forma de uma máscara a outra” (DELEUZE, 1988, p. 49). Portanto, nada melhor do que a noção de espelho para mostrar essa repetição, pois, como afirmou Freud, ao mesmo tempo que apresenta Eros, a vida, acaba por apontar o irrepresentável, a morte. É a representação que mediatiza o vivido ao relacioná-lo com a forma de um objeto idêntico ou semelhante. Eros deve ser repetido, só pode ser vivido

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na repetição, mas o pano de fundo da repetição é a repetição do novo, do estranho, situado no litoral, entre o simbólico e o real.23 A suposição freudiana do recalque originário, como uma marca que nunca foi representada pela palavra24, segundo Deleuze, aproxima-se de uma razão positiva interna da repetição, que será determinável em 1920 com a conceituação de pulsão de morte. A pulsão de morte deve ser compreendida em função de três exigências paradoxais complementares: dar à repetição um principio original positivo, um poder autônomo de disfarce e, finalmente, um sentido imanente em que o terror se mistura intimamente com o movimento da seleção e da liberdade.” (DELEUZE, 1988, p. 191)

A vida se constitui a partir da morte, o simbólico é indissociável do Real, o familiar e o estranho são inseparáveis. Mitos, como os de Perséfone, mostram que essa concepção já se faz presente na mitologia grega: Filha de Demeter, deusa da fertilidade, Perséfone é oferecida por Zeus a Hades,

o guardião da morte. Sua mãe, inconformada, faz com que Zeus

reconsidere sua decisão e mande Hermes buscá-la nos infernos. Ao partir, Perséfone come sem*ntes de romã, caindo na armadilha de Hades para obrigá-la a permancer no inferno. Assim, após uma negociação entre Hades e Demeter, Perséfone passa a viver seis meses no escuro do inferno e seis meses à luz do sol, vivendo a dualidade escuro/luz, morte/vida. Toda a obra de Lobo Antunes e as crônicas em particular testemunham essa possibilidade. Na crônica “Receita para me lerem”, por exemplo, o narrador afirma que sua narrativa é uma eterna repetição, pois constitui-se de “largos círculos concêntricos que se estreitam e aparentemente nos sufocam. E sufocam-nos aparentemente para melhor respirarmos” (ANTUNES, 2002, p.111). Retoma o dito de que gostaria que seus livros fossem espelhos, para que cada um pudesse regressar deles “como quem regressa da caverna do que era. É a única salvação que conheço e, ainda que conhecesse outras, a única que me 23

Pode-se ver aqui a semelhança entre as colocações de Deleuze e de Lacan ao se referir às duas formas de repetição; tiquê e automaton.

24

Como já foi explicado, essa teorização já se encontra na carta 52, escrita em 1896.

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interessa.” (ANTUNES, 2002, p.111) Se seus textos têm, à primeira vista, um tom melancólico, na verdade são um convite para o novo, para a transformação. Não que sejam tidos como exemplos, mas como um constante questionamento ao instituído, convidando o leitor para o que é pulsante. Portanto, não é de se admirar o fato de o escritor afirmar em entrevista, que se espanta ao constatar que as pessoas consideram seus textos atormentadores: “para mim, os meus livros não são tristes.” (BLANCO, 2002, p.65) Garcia-Roza (1990), num diálogo constante com a filosofia, faz uma leitura do texto de Freud a partir do pólo da diferença, tomando a pulsão de morte como sendo o mal radical da Psicanálise. Só que o vocábulo mal não é visto com uma conotação moral, mas como aquilo que é rebelde às grades simbólicas e sempre se insinua nas entrelinhas, trazendo consigo uma certa desestabilização. Segundo ele, “a pulsão de morte, entendida como potência destrutiva, recusa a permanência. Enquanto a pulsão sexual é conservadora, pois além de constituir uniões, tende a mantê-las; a pulsão de morte é renovadora. Ao colocar em causa tudo o que existe, ela é potência criadora”.(GARCIA-ROZA, 1990, p.134) Escrever tem algo de paradoxal. É ao mesmo tempo achar-se e perder-se. É confrontar-se com a experiência original, inominável que, apesar de indizível, dá origem ao movimento de resgate da memória. Podemos, como leitores nos reconhecer nesses textos porque o que existe em comum entre os seres humanos, independente da nossa história pessoal, é esse inominável. Assim, as memórias de cada um, remetem à memória de todos. Para Freud (1917), o escritor deve ser capaz de esvaziar o eu, enxugando de seu texto os excessos pessoais. Ora, em Lobo Antunes as referências ao eu são excessivas, mas é um eu esvaziado, que diz não saber de si. Essa experiência de estranhamento tem o poder de tocar o leitor naquilo que diz respeito à extimidade, no estranho familiar de cada um de nós.

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Quando mostramos que o aparelho psíquico se estrutura a partir de algo que está fora do espaço da representação, abre-se a possibilidade para o movimento, para o surgimento do novo na repetição. Lobo Antunes refere-se a essa questão em entrevista, ao afirmar que:

Nunca conseguirei o romance que quero fazer porque, primeiro, se o fizer , para quê continuar a escrever? Depois porque é uma luta constante com as palavras, com a resistência das emoções, mas esse é precisamente o encanto do meu trabalho. (BLANCO, 2002, p. 128)

O mesmo pode ser encontrado em várias crônicas. Por exemplo: “Saberiam os aspirantes a escritores que não alcançar o que queremos é nosso maior triunfo?” (ANTUNES, 2002, p.19) Ou, num tom mais depressivo na crônica: “Há surpresas assim” : Anda um homem às voltas com um livro, carregado de angústia e de dúvidas (escrever é uma atividade que raramente associo ao prazer) As mesmas de quando comecei, em outubro de 98, as mesmas que me acompanharão quando daqui a alguns meses o entregar ao agente e o agente dos editores, a suspeita de não ter sido capaz, de ter falhado, de dispersar em cinzas o material incandescente que tinha na mão...(ANTUNES, 2002, p. 279-281)

É porque a escrita do pleno é impossível, que a luta com as palavras é uma constante e sempre pede de novo, repete porque o real insiste. Lobo Antunes está consciente dessa luta. Ela se faz presente em suas crônicas enquanto temática e enquanto narrativa. No próximo capítulo, vai-se tratar desse impossível pela via do que Freud denomina de experiência de desamparo devido à castração, ou seja, procurar-se-á mostrar como Lobo Antunes fala dos desencontros existentes nas relações humanas, marcadas pela busca inútil de si mesmo e do outro pela via do amor e deparando-se com a solidão e com a morte em função da impossibilidade inerente à existência.

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CAPÍTULO 3 - O DESAMPARO “O estado de exceção em que vivemos é na verdade a regra geral” (Walter Benjamin)

A condição de desamparo é a marca da humanidade. Esta é a má nova das crônicas de Lobo Antunes e também da psicanálise. As soluções que a cultura oferece para fazer frente a esse desamparo são precárias, respostas ingênuas para algo que é radical: a morte e a impossibilidade da completude. Pode-se dizer que esta frase se faz cada vez mais presente na obra de Lobo Antunes, inclusive nas

crônicas. Os personagens são marcados por

inquietações, fragilidades, insuficiências e insignificâncias. O narrador das crônicas ora num tom nostálgico, ora num tom irônico, insistentemente transmite ao leitor essa mensagem, fazendo com que ele também se depare com suas próprias misérias. O pacto que se estabelece entre leitor e escritor se faz pela via do desamparo, pelos efeitos de inconsciente que produz. Eduardo Lourenço diz que Lobo Antunes faz, através de sua ficção, uma psicanálise visceral daquilo que nós somos. Em seus relatos estaria presente, principalmente, algo que se encontra imerso entre a razão e a loucura e que, de vez em quando, vem à tona. Lobo Antunes seria capaz de mostrar um mundo “onde a razão e a irrazão estão profundamente relacionadas uma com a outra, como a carne e o espírito misturados, como o sol e a treva realmente misturados” (LOURENÇO, 2004, p.355) . Se o ensaísta refere-se particularmente ao povo português que se vê desmascarado em suas ilusões pela lâmina da palavra do escritor, essas considerações podem ser estendidas para além das fronteiras de Portugal. Na verdade trata-se da vida do homem contemporâneo, que é mostrado numa atmosfera de sonhos desfeitos, de afetos (in)contidos, de uma solidão visceral e, ao mesmo tempo, na sua recusa de admitir esses afetos, essa solidão. O eu é um eu que não se apreende, não sabe de si e por isso mostra-se fraturado. A vida amorosa, em todos os níveis, apresenta-se particularmente em sua versão de fracasso.

O desamparo que é

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transmitido ao leitor é a tônica dessa estética do desprazer. As crônicas fascinam e incomodam, ou fascinam porque incomodam e este provavelmente é o seu diferencial. Ramon faz uma reflexão do que vai chamar de incomunicabilidade das crônicas, na medida em que elas mostram o muro que existe entre os seres humanos, nas relações sociais que se tecem em “espaços alienantes, disfóricos, desumanizantes” (RAMON, 2004, p.193), em que o sujeito apresenta-se “em crise, fragmentado, descentrado, reduplicado, exposto ao sofrimento manifesto na perplexidade com que encara a vida e que resulta na incomunicabilidade a que se vê reduzido” (RAMON, 2004, p.193). Como já mencionado no capítulo um desta tese, outro aspecto enfatizado por Ramon é que a “ausência da faculdade de compreensão” (RAMON, 2004, p.190) pode ser o verdadeiro motivo da escrita de Lobo Antunes. Escrever o que não se compreende é particularmente interessante ao se considerar a escrita do estranho, conjunto vazio que tangencia o campo da literatura e da psicanálise. Afinal a psicanálise é um saber que vem afirmar que a vida se estende muito além do que pode ser compreendido. O

estranho é, justamente, o que é capaz de nos fisgar pela

impossibilidade de compreensão. Esse impossível, ainda de acordo com Ramon, diz respeito à morte, aos costumes e à falta de amor. Ramon enfatiza o caráter especular de algumas crônicas que refletem a vida pessoal do autor e outras que se referem a “várias outras primeiras pessoas, masculinas ou femininas, através das quais a visão do mundo do autor se expande”(RAMON, 2004, p.192). De acordo com a autora, essas outras pessoas veiculam uma crítica aos valores que sustentam a vida social de Portugal. Esse artigo foi escrito tendo como base de reflexão o livro publicado em 1998. Entretanto, parece que progressivamente as crônicas vão se tornando menos voltadas para o social e ganhando cada vez mais um movimento de expansão para dentro, mesmo quando os

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narradores são outras primeiras pessoas, com vidas diferentes daquela do escritor. Como afirma o narrador da crônica “Receita para me lerem” (2002), reflexões sociais não constituem o foco de seus interesses. Assim como acontece nos romances, as crônicas vão se tornando mais íntimas e ao mesmo tempo mais marcadas pela desterritorialização.

3.1 – “que estranho eu ser eu”

A escrita das crônicas é, quase em sua totalidade, feita em primeira pessoa, o que dá aos textos uma feição confessional; fazendo-os soar como verídicos. Mas, verdade, no caso, não quer dizer necessariamente retrato fiel do escritor, embora muitas vezes o ponto de partida sejam fatos da vida de Lobo Antunes. Os versos de Fernando Pessoa dizem que o poeta é fingidor porque finge a dor que deveras sente. Onde estaria o limite entre a mentira e a verdade? Esses termos parecem mudar de sentido quando se trata de literatura, como também de psicanálise. Ou se dá um outro estatuto à mentira, elevando o simulacro à ordem da criação, como fez Deleuze (1994) em A ordem do sentido ; e/ou se pensa na verdade como não sendo da ordem do dito, tal como fez Lacan (1971) ao circunscrever o real. Quem é esse sujeito que é narrador e narrado nas crônicas? Se aqui o objetivo é detectar os vestígios do estranho, quando o tema é a pergunta quem sou eu, podemos perceber que o narrador das crônicas de Lobo Antunes constantemente refere-se a um estranhamento diante de si. “Que estranho é eu ser eu” diz o narrador freqüentemente, de diversas maneiras. O duplo, como foi mostrado no capítulo anterior, já dá suficientes mostras disso. Outra indicação deste “não saber” está em mostrar que, na vida, o acúmulo de experiência e o conhecimento não facilitam o viver, não esclarecem o hoje ou o amanhã, são “chaves desemparelhadas... Não se pode abrir nada com elas a não ser portas que deixaram de existir.” (ANTUNES, 2002, p.16)

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Nos três livros de crônicas, a tematização do não saber de si e a interrogação sobre a falta de sentido da vida e da morte parecem ficar progressivamente mais incisivos. Veja-se, por exemplo, a crônica “Manual de instruções”, publicada em 1998, que apresenta temática, imagens e estratégias irônicas que se repetem em várias crônicas. O titulo da crônica - “Manual de instruções”- já é marcado pela ironia retórica, uma vez que a instrução é a ausência de instrução no que diz respeito ao viver. O narrador mostra padecer da dor de existir, sem saber o que fazer da sua vida, manifestando um desejo de fugir. Primeiro das praias, povoadas de pessoas velhas que lhe sugerem possíveis imagens do envelhecimento que se torna próximo e que gostaria de evitar: “ os sexagenários vêm morrer na areia numa desilusão de cachalotes sem esperança, guardados por esposas que os alimentam de sanduíches de paio e jornais desportivos.” (ANTUNES, 1998, p.105). Mas o mal-estar do narrador vai mais longe: Atualmente as praias deixaram de me interessar porque me apetece, de facto, ir embora, não daqui mas do que tenho sido, ou seja do medo de uma cadeira vazia do outro lado da mesa do almoço, com uma jarra de flores de plástico a substituir um sorriso que se inquieta com nossas alterações de humor e nos recomenda uma visita ao dentista, tomando pelo mal estar de uma cárie o desgosto de nós mesmos que nos faz arrastar de sofá em sofá essa espécie de reumatismo da alma que as porteiras e os psiquiatras confundem com a tristeza.(ANTUNES, 1998, p.105)

Esse parágrafo chama a atenção por diferentes razões. O fato de ser escrito em apenas um período longo transmite ao leitor algo da ordem de um cansaço, que parece ser o que o narrador sente relativamente ao seu viver. Há algo maior que o incomoda: o que tem sido. O que o desgosta na vida é a solidão da cadeira vazia e da falta de vida apresentada na artificialidade das flores de plástico. Tem reumatismo na alma. A vida parece habitada pela morte. Também a referência ao mal-estar de uma cárie repete-se em várias crônicas. A cárie parece remeter a um buraco/falha na existência, como já mostrado na crônica “O gordo e o infinito”, e que costuma ser reiteradamente confirmado pela passagem da língua. Em “Manual

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de instruções”, a cárie está associada ao “desgosto de nós mesmos” (ANTUNES, 1998, p. 105). As idas ao dentista, também repetidas em outras crônicas, têm uma conotação traumática. Quer se refira à falta de recursos dos dentistas nos idos tempos de guerra ou a uma consulta corriqueira, a ida ao dentista é tida como um ato em que o eu se coloca como vítima da violência do Outro, enfatizado algumas vezes pelo infantil uso do babador, outro indicador de desamparo. Se é angustiante ir à praia, também o é estar no supermercado, significante da vida contemporânea, onde mais uma vez, diante da infinidade de itens expostos nos corredores, o narrador se “empalidece de solidão” (ANTUNES, 1998, p.105) e busca, então, a infância perdida nas merceariazinhas do bairro. Na luta contra o tempo, quer pegar um trem que possa oferecer “a amplidão de um futuro que teimei em reduzir a proporções de um presente esquelético que os romances iluminam numa claridade de azeite de ampolas de hospital, sol de doentes que não aquece nem exalta.” (ANTUNES, 1998, p. 106) Sem futuro e sem presente, o eu/narrador afirma que: descobriu tarde demais que os verdadeiros fantasmas são os vivos, e em descobrir no espelho da manhã, uma cara parecida com a dos meus retratos que me pedia o que tinha medo de lhe dar. (ANTUNES, 2002, p. 106)

Esse rosto no espelho, outra imagem reincidente nas crônicas, sempre traz surpresa ao narrador, por mostrar-lhe uma imagem que desconhece ou revelar estranhas verdades que gostaria de ocultar. Mas o término da crônica é uma proposta de reconciliação consigo mesmo, através de uma solução mágica: Se tiver um pouco de sorte, hei de encontrar a cara do espelho a minha espera. Senão, não vou desesperar: recuperá-la-ei num reflexo de montra e viremos juntos para casa jantar frente a frente, sem presságios nem remorsos, livres da dieta do bom senso que nos tirou o gosto aos dias e sem necessidade de uma jarra de plástico para nos defender da solidão. (ANTUNES, 1998, p.106)

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Também esta é uma estratégia recorrente: a presença da leveza para lidar com o que traz angústia, recorrendo novamente a Calvino (1990), a leveza é como um salto ágil e imprevisto que traz consigo a possibilidade de sobrelevar o peso do mundo. É como se o narrador pretendesse

nomear suas dores no gesto de escrever e, em seguida, com outro

gesto, pudesse apagá-las. A crônica escolhida para apresentar como o desamparo é tratado no Segundo Livro de Crônicas (2002) tem a mesma temática: uma perplexidade diante da falta de sentido da vida que leva o narrador a gritar algo parecido com a letra da música do compositor brasileiro Raul Seixas: “pare o mundo que eu quero descer.” A frase de Lobo Antunes é outra, mas quer dizer o mesmo: “hoje estava capaz de me ir embora.” Como na crônica anterior, há um período longo que descreve com mais intensidade a angústia do narrador:

Hoje estava capaz de me ir embora: pegar nas chaves do carro sem motivo nenhum (as chaves estão sempre no prato de entrada) Descer as escadas (não descer pelo elevador, descer as escadas) Até a garagem da cave, ver o fecho elétrico abrir-se com dois estalos e dois sinais de luzes, ver a porta automática subir devagarinho e, logo na rua, acelerar o mais depressa possível, queimando semáforos, na direção da auto-estrada sem ligar os painéis que indicam as cidades e a distância em quilômetros, sem uma idéia na cabeça, sem destino, sem mais nada para além dessa pressa de me ir embora, colocar entre mim e mim o maior espaço possível, esquecer-me do meu nome, dos nomes dos meus amigos, da minha família, do livro que não acabo de escrever e me angustia. (ANTUNES, 2002, p.41)

A minuciosa descrição de detalhes aparentemente sem importância traz, de acordo com Barthes, “efeitos de real”. Assim, pode-se visualizar, nos movimentos pesados do portão da garagem, no carro acelerado, nos semáforos queimando, a angústia do narrador. Da mesma forma, a repetição da preposição sem denota afetos angustiantes diante do viver. O narrador gostaria de livrar-se de si mesmo, “colocar entre mim e mim o maior espaço possível” (ANTUNES, 2002, p.41).

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A frase “hoje estava capaz de me ir embora” aparece cinco vezes na crônica. No segundo parágrafo a vontade de separar-se de si é justificada pela sensação de sufocamento: o aperto das paredes da casa e a sensação de estranhamento. Em seguida o narrador refere-se à batalha da escrita, ao cansaço da própria escrita, assim como das obrigações da vida de escritor. Ir para um lugar qualquer, ter outra identidade, livrar-se dos editores, dos livros, dos autores, do livro que não consegue terminar de escrever. Ir embora, sem regresso, sem espalhafato, sem explicações. No final da crônica, o desejo de ir embora parece ter se amainado, indicando que, apesar de penosa, a escrita também pode ser possibilidade de operar com a angústia, pois o narrador (também o escritor?) apresenta-se mais apaziguado: As árvores do parque serenaram por fim. Ligo a televisão. Não entendo o que se passa no écran mas continuo a ver. A criança sorri-me do aparelho. Infelizmente o sorriso dura pouco tempo. Se calhar nem sequer um sorriso. Há momentos na vida que necessitamos tanto de um sorriso. A falta de melhor toco-me o dedo no caixilho. (ANTUNES, 2002, p. 43)

No terceiro livro, esse sujeito que não sabe de si apresenta-se, por exemplo, na crônica “Uma jarra em contraluz, com um galhozito de acácia”. Nesse texto, tempo e espaço aparecem como fantasmagóricos. Numa casa velha em que as torneiras pingam e o frio entra pelas frinchas da janela, ou seja, em que o mundo não funciona de acordo com o que se espera: as torneiras e as janelas são incapazes de vedar, de conter o que traz mal-estar. O frio não se restringe ao que vem do mundo lá fora, rodeado de espectros, o narrador olha os retratos dos seus antepassados e pergunta-se sobre que relação teria com eles: Nasci assim, casual combinação de moléculas a que chamam António, nasci assim, meio surpreendido, numa família que me toma por seu e engana-se, quantas vezes penso que não sou daqui, oiço o que não há, vivo noutro sítio entre aparições, onde as vozes deste lado me chegam confusas, remotas, numa língua que não é bem a minha e acompanhadas de sorrisos, palmadinhas, soslaios curiosos - Nunca cá estás, pois não? eu - o que quererá dizer nunca cá estás? A entender, a resolver a questão com um gesto que, à força de não significar nada, vai servindo para tudo, defendo-me como posso

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- Às vezes distraio-me E não é verdade, não me distraio, deixo o corpo com vocês e ando por aí, o meu corpo finge que ouve, que se preocupa, que conversa, e eu livre, a olhar as pessoas, a passear, a dar uma corridinha a fim de entrar no corpo no momento das despedidas, chego a afirmar -Foi um prazer E prazer algum, nem prazer nem desprazer, não dei por nada, andei por aí ao acaso, é a maneira de olhar de certas mulheres que ainda me prende aqui, certas gargalhadas curtas, a textura de certas peles, o desejo que certas expressões (nem sei bem explicar quais) me provoca (ANTUNES, 2006, 141-142).

As noções de eu e de Outro são inter-relacionadas, o narrador estranha a si mesmo e também desconhece o mundo a sua volta. A língua, os gestos, soam como estranhos. Descompassado em relação ao mundo a sua volta, que não lhe traz prazer nem desprazer, o narrador se aliena, anda por acaso, foge de seu corpo. Novamente a falta de sentido da vida e o desconhecimento de si mesmo é o que mais incomoda. Quem vai socorrer o narrador é novamente a fantasia: o desenho da rapariga projetado pela sombra da jarra no reposteiro da varanda. A sombra o chama e esse chamado é acolhido pelo narrador: há de chamar-me - António E a gente os dois a descer do terraço para o jardim da casa (um terraço de azulejo com vasos de pedra) E a corrermos lado a lado no jardim (...) ultrapassando o portão, outros portões, outros muros, outros terraços ainda, a gente os dois, de mão dada, na direção do mar.(ANTUNES, 2006, 144)

3.2 – A loucura

Esse sujeito que não sabe de si pode surgir também a partir de outros eus, que algumas vezes apontam para a loucura. O nonsense, segundo Freud, é uma das formas do estranho se manifestar. Só que Lobo Antunes não apresenta a loucura como algo distante: pelo contrário, muitas vezes o narrador ora ocupa o lugar de quem cuida do louco e, subitamente, muda de lado, sendo contaminado por ela. Em outras é o louco quem fala na primeira pessoa. Por exemplo, na crônica “O acaso é o pseudônimo que Deus utiliza quando não quer assinar”, o narrador faz uma ponte interessante entre a suposta sanidade e a suposta loucura,

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mostrando que elas estão mais próximas do que se pode imaginar. O título da crônica sugere que o Outro tem limites, nem tudo está contido nos ensinamentos de Deus. Existem linhas tortas que Deus não reconhece como sendo de sua autoria e a loucura, ao esgarçar os limites da razão, é uma demonstração disso. Nessa crônica, encontram-se dois cenários. O primeiro é o hospital psiquiátrico, onde uma árvore abriga simultaneamente luz e sombra: “mesmo nos dias de sol, a noite parece continuar nela” (ANTUNES, 2002, p.149); também quando escurece, “o dia parecia continuar nela” (ANTUNES, 2002, 149). O narrador refere-se a um doente que havia se enforcado e da sua dificuldade de preencher o prontuário do paciente. Vê-se, diante do morto, usando a mesma estratégia que usava no exercício da escrita de poemas: contava as sílabas dos versos e contava também os dedos dos pés descalços do morto. A escrita está associada a uma angústia diante do indizível da morte. O segundo cenário consiste numa ida à casa dos pais num dia sujo, com nuvens cheias de nódoas. Os significantes sujo e nódoas vão indicar a angústia do narrador, que, também, numa espécie de loucura, vê seu eu dividido, duplicado: Ao sair tive a impressão que saía muito mais do que sair para a rua. Chamaram o meu nome. ( alucina o narrador) Ia jurar que chamaram meu nome. António. Sem sobrancelhas franzidas (como parecia ser o chamado da mãe, na infância) Só Antonio. Quem seria? A trepadeira? A varanda? As plantas do canteiro? (delira o narrador) Voltei-me e dei comigo mesmo a observar-me. Adeus António, soprou ele. Já não me via há séculos. Respondi: -Adeus António E desejei não tornar a encontrá-lo. Para quê? (ANTUNES, 2002, p. 151)

Nos dois cenários da crônica, não há separação nítida entre dia e noite, ambos abrigados constantemente na árvore do pátio do hospital. Também não é nítida a separação entre a vida do poema e a morte do doente, entre a suposta sanidade do médico e a loucura do suicida. No segundo cenário o narrador mistura os tempos e se desconhece. A suposta loucura agora é do narrador que, ao sair da casa dos pais é acompanhado fantasmagoricamente por sua

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infância. Vozes do passado o chamam. Há um eu que chama e outro que estranha o chamado. Não quer se encontrar, mas sim despedir-se de si mesmo. Já a crônica “O amor dos animais” vai tratar da ausência de limites entre o médico e louco pela via da comicidade. O paciente apresenta-se para consulta dizendo que havia sido instruído pelos irmãos a procurar um psiquiatra porque gostava dos animais. “o doutor acha normal que os meus irmãos se preocupem com isso?” (ANTUNES, 1998, p.173) Buscando a cumplicidade do médico, o paciente diz que aposta que ao doutor também “agrada conversar com os tigres.” (ANTUNES, 1998, p.174). Rompendo os limites do seu lugar e igualando-se ao paciente, o médico diz que adora hipopótamos. A divergência quanto à preferência pelos animais leva médico e paciente a gritarem em defesa de suas predileções: tigres ou hipopótamos. Assim termina a crônica: O dos tigres e eu estamos internados há dois meses e odiamo-nos. Não sei o que vão fazer, mas a mim prometeram dar-me alta para a semana com a condição de não exercer a medicina. Quero lá saber da medicina: o que quero é ir direitinho ao jardim zoológico com um molho de cenouras no braço, dirigir-me ao tanque e ficar lá, dias seguidos, a falarmos da vida. (ANTUNES, 1998, p.175)

Parece que o mesmo personagem ressurge na crônica: “Escrito a canivete”. O senhor Rui é um paciente que gosta de conversar com os tigres. A loucura aqui está associada à falta de conforto e à falta de dinheiro; o delírio é visto como uma estratégia possível para se lidar com as mazelas da existência, por isso o narrador/médico decide retirar-lhe a medicação: “como invejo um homem capaz de conversar com as jaulas tirei-lhe as pastilhas contra os tigres que eram também contra o senhor Rui que andava tolhido e sonolento” (ANTUNES,1998, p.318). Até que ponto a medicação retira do paciente seu único recurso para lidar com um mundo tão injusto? Aqui pode-se ver uma crítica à psiquiatria e, mais particularmente, à medicação. Novamente o médico coloca-se no mesmo nível do louco, pois afirma invejar a estratégia do seu paciente.

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Em outra versão, a loucura é apresentada a partir da vivência edípica, na trágica crônica “O grande e horrível crime”. A temática é a de uma relação supostamente feliz entre um filho de quarenta e um anos e sua mãe viúva. Ambos ganham a vida num salão de beleza, a cuidar das “mulheres divorciadas”. Vivem um para o outro, trabalham, passeiam e almoçam juntos aos domingos. Nessa relação exclusivista há lugar para o erótico em prazeres orais partilhados: “conversamos um com o outro, no verão, a lamber gelado de baunilha na esplanada no meio da aflição dos pardais.” (ANTUNES, 1998, p.123) Viviam assim até que Edílson , um rapaz de vinte anos que usava casaco encarnado, “começou a visitar-nos” (ANTUNES, 1998, p.123).O namoro da mãe com o rapaz quebra o idílio em que filho e mãe viviam até então. O narrador encontra “minha mãe de saia nova numa voz de quem desmaia ou se espreguiça.”(...) “E a minha mãe como se eu não existisse.” (ANTUNES, 1998, p.124) No lugar de excluído, o encanto do narrador se desfaz, o pronome possessivo minha deixa de ser exclusivo. Se antes viviam de um lado ele e a mãe e de outro, as mulheres divorciadas, de repente a mãe dá sinais de semelhança com aquelas que teriam uma conduta pouco recomendável. Usava “soutien de barbas, brincos compridos, um sinal fingido na bochecha.” (ANTUNES, 1998, p.124) Quando o narrador pega uma faca para separar os cubos de gelo que não queriam soltar-se, metonimicamente ataca a mãe que se grudara ao outro, deixando-o sozinho. A crônica passa a ter um movimento cinematográfico, como num filme de Hichtco*ck: Nunca namorei, a minha mãe - larga a faca Aníbal, que brincadeira mais parva nem faço tensões de namorar, a minha mãe, com as mãos à frente da cara - Edilson A minha mãe, de organdi azul - Edílson via-se um barco e não via o barco e ao levarem-me para a esquadra nem sequer protestei, não me diga que aquela era minha mãe, não era a minha mãe, a minha mãe não tinha nada em comum com as divorciadas do bairro e nunca por nunca usaria um sinal fingido na bochecha, a minha mãe que era uma senhora, nunca por nunca vestiria um soutien de barbas. (LOBO ANTUNES, 1998, p.125)

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Ver a mãe como mulher, usando coisas atribuídas a prostitutas, grudada com outro que não o filho, torna-a irreconhecível. Assim, não era a mãe que ele tinha esfaqueado. A mãe era a que existia antes. Por não suportar a exclusão, opera-se uma cisão no narrador que ao mesmo tempo “via o barco e não via o barco”. A cisão também se opera na mãe: santa e puta, mãe e mulher divorciada. Assim ele mata a mãe/puta/mulher divorciada, para continuar com a mãe/santa, só dele. Nessa crônica a loucura apresenta-se na vestimenta do amor. Pode-se assim fazer uma ponte para o ítem seguinte, em que se analisará a forma como o amor apresenta-se nas crônicas.

3.3– “Que estupidez o amor”

Freud (1912), em “Contribuições para a psicologia do amor”, tira esse sentimento do lugar sublime, onde, segundo ele, costuma ser colocado pelos poetas e, como se estivesse de posse de um bisturi, disseca as relações amorosas, mostrando como elas são banhadas por águas de conflitos e desejos infantis. O pai da psicanálise acaba por concluir que, independentemente das questões específicas de cada momento da civilização, existe algo na própria natureza do amor que nos nega satisfação completa. Os textos de Lobo Antunes atestam e discordam dessa perspectiva de Freud, pois vai fazer uso do literário justamente para destronar o amor; mostrando que nem para os poetas o lugar do amor é necessariamente o do sublime. Nas crônicas, os raros momentos em que este se apresenta como um encontro, trata-se ou de uma metáfora de outros encontros, como no texto “Como nós” em que o narrador/ pai ansiosamente deseja o surgimento da filha, comparando seu amor a um “ruidoso silêncio” (ANTUNES, 1998, p.92) de um amante à espera da amada; ou o suposto encontro é impalpável, ecoando perdido em algum lugar do

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passado marcado por fantasias infantis, como já mostrado na crônica “Subsídios para a biografia de Antonio Lobo Antunes” . De todo o universo das crônicas; apenas nesses momentos ele é tido como um encantamento. No que diz respeito à esfera das relações conjugais, pode-se dizer que o amor só pode ser apresentado pelo não, quer se trate de narradores masculinos ou femininos. Embora a forma de dizer seja diferente quando se trata de homem ou mulher, a temática será sempre a do

desencontro amoroso. A psicanálise esclarece que o não é condição para o amor.

Esclarecendo melhor, o sim ao amor comporta também um não, ou seja, há necessariamente um desencontro no encontro amoroso. Esse não irá se mostrar de maneira diferente nos dois sexos: o caminho da mulher é marcado pelo insaciável desejo de ser amada e o parceiro buscado seria aquele que poderia, mas não consegue, suprir sua falta, dando-lhe o que ela sente que não tem (CAMARGOS, 2003). Em Lobo Antunes, o narrador feminino sofre pelo desencontro amoroso, mas nunca perde a esperança de encontrar um parceiro idealizado. Nessa versão feminina, a perspectiva é de que o amor ainda não aconteceu, mas vai acontecer um dia. Já o sujeito que se inscreve como masculino supõe-se detentor do falo, o que traria a ilusão de completude. Quem pretende sustentar a completude não suporta a manifestação do desejo, pois desejar é apontar a falta (CAMARGOS, 2003). Lacan, para enfatizar a dimensão de falta, vai dizer que “amar é dar o que não se tem” (LACAN, s/d, citado por CASTEL, 1994). Por isso, a demanda de amor denuncia a incompletude de quem ama. Como estratégia defensiva, o homem deprecia o feminino e o amor.

Nas crônicas de Lobo Antunes,

condizente a essa posição, os narradores masculinos, quando diante do amor, irão se angustiar temendo a demanda de amor da mulher, evitando-o pela via da negativa ( não reconheço que amo) ou do adiamento (ainda não é hora para decidir sobre o amor).

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Há um muro intransponível na relação entre os sexos e por isso, apesar de se buscar constantemente no amor uma suposta completude, essa estratégia acaba por levar ao desamparo, marca da presença do estranho. Na busca do como um, depara-se com o incomum. (CAMARGOS, 2003) Tomando como referência a estrutura da lógica modal de Aristóteles (MORA, 2001), Lacan vai dizer que o amor atesta a precariedade dos modos, passando por todos eles: Possível – o que cessa de se escrever. Essa é a dimensão essencialmente imaginária do amor. Usualmente ela acontece no momento de enamoramento, quando os protagonistas podem ilusoriamente acreditar que encontraram a pessoa que irá completá-los. Se acontecesse a completude almejada, a demanda de amor cessaria e a busca teria fim. Impossível – o que não cessa de não se escrever Este modo marca-se por um não ao amor. Isso não quer dizer que o amor não exista, pelo contrário, os grandes amores da literatura são marcados pela impossibilidade (ex: Riobaldo e Diadorim, Romeu e Julieta, Heloisa e Abelardo, etc). O próprio Lobo Antunes, em entrevista, refere-se à relação amorosa que teria tido com sua ex-esposa, assim: “minha história com a Zé é uma história de amor e da impossibilidade do amor” (BLANCO, 2002, p.61) Contingente – o que cessa de não se escrever. O modo contingente é o que pode ser, assim como pode não ser ( MORA, 2001). Em algumas circunstâncias, o amor pode parar de não se escrever: há um encontro possível, que acontece num determinado momento, mesmo que seja fugaz. Necessário – o que não cessa de se escrever.

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Na lógica modal, o necessário se opõe ao contingente, diz respeito ao que tem que ser. No modo necessário, o amor, justamente por não se ajustar inteiramente a nenhum dos modos anteriores, torna-se uma busca constante, premente como uma necessidade. Sabe-se que, por princípio, o amor como possibilidade de se encontrar a metade perdida é da ordem da pura ilusão, Platão já refere-se a isso em seu Banquete. Ele não traz a completude, quer seja na versão masculina ou feminina. O amor, brinca Lacan (1985), é um amuro, os seres amados estão ligados e separados por uma falta, por um conjunto vazio. Assim, quer seja na versão feminina ou masculina, passando pelos diferentes modos, falar de amor é, ao mesmo tempo, falar de solidão. Essa premissa também se verifica nas crônicas de Lobo Antunes. Três crônicas, publicadas quase subseqüentemente no primeiro dos livros de crônicas são interessantes para mostrar as posições masculinas e femininas diante do amor ou da solidão. As três são narradas em primeira pessoa, o que lhes dá um tom de confidência intima, de algo que o narrador não quer admitir nem para si mesmo, mas que aparece nas entrelinhas do texto. Na primeira - “O fim do mundo”- o narrador é um homem que perdeu a mulher amada por não poder bancar o amor que sente por ela, nem a dor de havê-la perdido, apesar desta dor estar expressa já no título da crônica: Isto pode ter acabado mas não sou tão parvo que vá chorar à tua frente.Pelo contrário: apareço-te com um sorriso como se não fosse nada... digo - Boa noite Manuela E como a sopa até o fim, a falar disso e daquilo, sem dar a entender que estou triste, que tenho um nó na garganta, que sinto a minha vida em cacos porque juro-te que não sou tão parvo que vá chorar a tua frente. (ANTUNES,1998, p.115)

Em nome de uma estratégia obsessiva, incapaz de bancar o desejo, o narrador masculino se vê diante do amor como “uma coisa esquisita”, estranheza que o impede de assumi-lo e faz com que sempre adie a decisão de casar com a mulher que ama, até que ela o

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acossa para uma decisão da qual o narrador mais uma vez recua e ela decide ficar com outro. Assim, o personagem/narrador perde a amada por ser incapaz de escolher, ou seja, por ser incapaz de perder, e, ao mesmo tempo, de admitir a dor da perda: E sento-me no quintal das traseiras até ser noite e sem chorar, claro, não sou tão parvo que comece a chorar, que mariquice chorar, eu não choro, não penses que choro, não choro, sento-me no quintal das traseiras até ser noite a dar milho às galinhas, a dar milho às galinhas, a dar milho às galinhas, à dar milho às galinhas (ANTUNES, 1998, p.117).

A dor, por deixar o homem no lugar de quem é portador de uma falta, só se escreve pela negativa, pois, como diz Freud (1925), o não é uma forma de suspender o recalque e admitir o que não é aceito pelo eu.

A segunda crônica chama-se “Teoria e prática dos domingos”. Ela mostra que, também na esfera do amor, o estranho habita o familiar: na suposta harmonia de um casal vivendo o cotidiano, podem surgir afetos que surpreendem o eu e que na convivência cordial pode co-habitar algo de “esquisito”. Já no título, a crônica sugere que, assim como há uma certa disjunção entre teoria e prática, também um casamento, tido teoricamente como bem sucedido, pode ser percebido como entediante: na crueldade do cotidiano, o amor às vezes precisa ser suportado. O narrador é um homem angustiado diante do vazio que o casamento foi incapaz de sanar; para ele a vida, embora sem problemas aparentes, apresenta-se sem solução, como no verso de Drummond: “Mundo vasto mundo, se eu me chamasse Raimundo seria uma rima e não uma solução. Mundo, mundo, vasto mundo, mais vasto é meu coração” (DRUMMOND, 1988, p.4) A demanda da mulher por sua presença, o tratamento afetuoso que dispensa ao marido reforçam a sensação de mal-estar, “é um martírio e não entendo porque dado que gosto de ti, nem sequer sou infeliz” (ANTUNES, 1998, p.120). O arrastar do domingo ao lado dela é insuportável: “porque razão me apetece tanto qualquer coisa que nem sei o que é em vez de

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ficar contigo?” (ANTUNES, 1998, p.119) Busca em vão respostas para “a coisa estranha, um aperto, uma aflição incomodada” (ANTUNES, 1998, p.120) diante do domingo interminável. “Não percebo o que quero mas percebo que não é isto que quero, este túnel de horas, esta poltrona óptima durante a semana e desconfortável ao domingo onde não consigo sentar-me, onde não encontro posição”(ANTUNES,1998, p.120). O desconforto é deslocado para a poltrona ou para a programação rotineira do casal nos finais de semana, na convivência com os familiares. A volta ao trabalho que, na terça-feira será sentida como deprimente, é vista no domingo como uma libertação, “os ponteiros do relógio principiam a girar” ( ANTUNES, 1998, p.120). A sua conclusão é que felizmente “só há a miséria de um domingo de nada por semana” (ANTUNES, 1998, p.121). Só uma vez na semana terá que se deparar com o insuportável de sua existência: “um insignificante domingo por semana e seis enormes dias inteirinhos para ser feliz” (ANTUNES,1998, p.121).

A terceira crônica se chama “A solidão das mulheres divorciadas”. Esta é uma das que foram escritas em primeira pessoa e em que o narrador é do sexo feminino. Uma mulher divorciada, deprimida diante da solidão, convive com a idéia de se matar e, ao mesmo tempo, busca de maneira desesperada um novo homem para preencher sua vida. De acordo com a mãe, ela deve encontrar um rapaz como deve ser. Mas, na sua procura, costuma acordar nos domingos em apartamentos em que se vê “incapaz de tomar banho num chuveiro em que faltam o sabonete e a água além de se achar ocupado por um monte de jornais velhos” (ANTUNES, 1998, p.128).

Como na crônica anteriormente

mencionada, os acontecimentos se desenrolam no fim de semana e têm como conseqüência uma “topada” com o desamparo. Como Penélope à espera de Ulisses, a narradora desfaz “o tricô do domingo anterior” (ANTUNES, 1998, p.127).

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As personagens mulheres descritas nas crônicas de Lobo Antunes parecem estar insistentemente, apesar das frustrações, em busca de um homem que possa salvá-las de se haver com a solidão. Na presente crônica, a busca da narradora a leva apenas a encontros casuais com homens que reafirmam sua solidão e reforçam seu desejo de se matar. Esse homem que conviria também não se encontra em seu passado, pois, ao esbarrar com o exmarido e não ser percebida por ele, a personagem se pergunta se ele a teria visto algum dia. Apesar dos desencontros, ela continua consultando sua vida amorosa nos horóscopos e lendo no jornal um artigo do caderno feminino que “explica como um cinto de ligas e uns sapatos vermelhos poderiam mudar a minha vida afectiva” (ANTUNES, 1998, p.128) Também a crônica “As palavras cruzadas no jornal” tem como temática a solidão de uma mulher imersa em um casamento em que o muro da incomunicabilidade separa o casal que habitava sob o mesmo teto. Ela a querer agradar o marido e ele a desconsiderá-la, fazendo palavras cruzadas no jornal. Cruzadas também são as palavras entre eles, elas caminham em diferentes direções. Ele voltado para o jornal, para a TV, ela insistentemente querendo agradálo, cuidando dele como se fosse um filho ou fazendo, em vão, esforço para se colocar como uma mulher desejável. Suas palavras e gestos ecoam no nada, o marido não a percebe, nem a escuta. No final da crônica, o leitor se inteira de que Renato, o marido, deixou-a há dois meses; a mulher continua, entretanto, a esperá-lo: Falta-me alguém de quem possa tomar conta, para quem cozinhar, para quem pedir a mulher a dias para engomar as camisas para além de me custar admitir que ele não volta ... porque quero pensar que logo a noite ele vai chegar, vai me dar um beijo, perguntar - Mudaste a botija de gás? E se vai instalar na poltrona como se nada fosse a resolver as palavras cruzadas no jornal. (ANTUNES, 1998, 209)

Não há nela um movimento no sentido de mudar a direção da própria vida ou de mudar o casamento, prefere continuar a exercer o papel de mãe do marido, permanecendo na solidão a que já se acostumou.

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A falácia de que o amor pode trazer a completude é apontada por Lobo Antunes, assim como o é pela psicanálise, como mais insistente no imaginário das mulheres. Também no segundo livro, a crônica “Espero por ti no meio das gaivotas” , o narrador é outra vez uma mulher que demanda o amor do marido. Apesar dos desencontros do casamento, da falta de assunto, do sexo sem amor, continua nostalgicamente à espera que o tempo passado retorne, tempo em que o amor se situava no modo possível, quando em sua memória “com as gaivotas todas na praia, corríamos de mãos dadas a assustar os pássaros, achavas-me graça, achavas-me bonita, dizias que eu ficava linda a correr” (ANTUNES, 2002, p.62). Assim continua a narradora: Ainda tenho a certeza (cada qual tem as certezas que quer) De sermos felizes para sempre, de podermos ser felizes se um dia me deixares Deixas não deixas, aposto que deixas (- Que teimosia, que insistência , já é cisma caramba) Abraçar-te. (ANTUNES, 2002,p. 63)

A frase “cada um tem as certezas que quer” evidencia a dimensão imaginária do amor. Pode-se perceber que o discurso dos personagens femininos se contrapõe ao dos personagens masculinos das crônicas anteriores que se encontram sempre de pé atrás em relação ao amor. Como se a voz feminina se manifestasse, insistentemente, em defesa da crença de que o amor um dia será possível. Ora, se apesar dos desencontros, a crença se mantém, o amor torna-se da ordem do necessário, não cessa de se escrever. Já na voz narrativa masculina, o amor é escrito como impossível, muito mais marcado pelo não, como foi mostrado nas crônicas em que o narrador é um homem. Esse amor impossível torna-se, entretanto, subitamente contingente quando se refere a um tempo passado ou mítico, não localizável na cronologia, num encontro que se faz fora do tempo. Aí ele se reveste de cores poéticas e de nostalgia. A crônica “Não entres por enquanto nessa noite escura” , já mencionada, é um exemplo disso. Aqui é evocada a lembrança de uma mulher/criança mítica em um tempo mítico em que era possível ser feliz em

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contraposição a um presente marcado pela guerra. Ou seja, o amor aqui é de outra ordem, é encontro que se faz no e apesar do desencontro: Não sei bem o que dizer do teu sorriso porém quando me olhavas, dava-me a idéia de principiar na minha boca e estender-se depois pelas paredes da casa até iluminar a tua como certos freixos, certas crianças, certas rosas. Ou pássaros. As cotovias por exemplo, em Abrigada, atrás de quem corrias sempre, segura de voar. (ANTUNES, 2002, p.37)

Aqui, o amor vem como uma possibilidade de refúgio da guerra. Diante do terror da noite escura, o encontro se dá no sorriso da mulher que se inicia na boca do homem e se estende e abre-se para um mundo de luz, movimentos e perfumes, contrapondo-se ao presente vivido como aterrador. Narrador e narratário são marcados pela mesma dor, pela mesma guerra, carregando os mesmos mortos. “E cá estão. Fazem parte de ti, de mim, do mundo. De onde tornas a nascer. Imensamente” (ANTUNES, 2002, p.39). Lacan, ao se referir ao modo contingente de amor, explica poeticamente: Aí não há outra coisa senão encontro, o encontro, no parceiro, dos sintomas, dos afetos, de tudo que em cada um marca o seu traço de exílio, não como sujeito, mas como falante, do seu exílio da relação sexual. Não é o mesmo que dizer que é somente pelo afeto que resulta dessa hiância que algo se encontra, que pode variar infinitamente quanto ao nível de saber, mas que, por um instante, dá a ilusão de que a relação sexual pára de não se escrever? Ilusão que algo não somente se articula, mas se inscreve, se inscreve no destino de cada um, pelo que durante um tempo, um tempo de suspensão, o que seria a relação sexual encontra, no ser que fala, seu traço e sua via de miragem. (LACAN, 1985, p.198-199)

Desse modo, o amor é convocado a fazer suplência ao desamparo. Com ele, como se vê em Lobo Antunes, torna-se possível “habitar a terra pelo lado da pele” (ANTUNES, 2002, p.38). Outra forma usada pelo nosso autor para referir-se ao amor é pela via do cômico. A estratégia do riso permite rasgar e colocar a nu o desencontro dos casais. Uma delas, “O meu primeiro encontro com minha esposa” é particularmente engraçada. Tem como personagens um casal que se encontra pela primeira vez após o narrador/homem ter colocado no jornal um anúncio de casamento. A crônica consiste na conversa que o narrador teria tido com a esposa

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no dia em que a conheceu. Ao deparar-se com a mulher, relata as perguntas que se havia feito, o que havia imaginado antes de vê-la; “imaginei coisas, percebe, a gente imagina sempre coisas, a cara, o sorriso, a voz, será alta, será magra...” (ANTUNES, 1998, p.259) e o impacto de conhecer a mulher que havia respondido ao anúncio. O narrador evita ser indelicado, mas sua decepção é impossível de ser escondida e se apresenta pela via da negativa: Não esperava que você fosse exatamente assim. Não tem nada a ver com a beleza ou a perfeição dos traços ou o modo de arranjar-se ou a gordura, essas coisas são menos importantes para mim do que julga e depois uma senhora forte é agradável, é sinal de saúde, se por acaso eu não for capaz de abrir a lata de conservas com o martelo você vai lá com o dedinho e trucla, não é que faltarem dentes à frente me preocupe, é da maneira que se gasta menos em bife e mais em purê de batata e economizam-se uns tostões que o talho anda pela hora da morte, se me permite a sinceridade o que me incomoda é seu olho esquerdo, quer dizer o direito vê-me noto que me vê, mas o esquerdo parece amuado comigo. (ANTUNES, 1998, p.260)

O narrador também tem aspecto físico deplorável: sua faxineira havia dito que, se tivesse colocado foto no anúncio, não teria recebido nem essa única resposta. Mas a futura esposa reage de maneira violenta à sua decepção, agarra-o e levanta a carteira para agredi-lo. Diante da ameaça, o narrador não tem outra alternativa: largue-me, eu caso consigo, mas largue-me, se você me largar vou direitinho ao supermercado compro duas dúzias de Cerelac por causa da sua falta de dentes e começamos já hoje, já agora, já aqui a ser felizes, que bom o seu olho direito outra vez apaixonado, que bom a sua carteira quietinha na mesa. (ANTUNES, 1998, p.260)

Assim, após o pedido de casamento, o narrador pode se apresentar:

chamo-me Abílio da Conceição Pedrosa, trabalho na companhia de gás, muito prazer minha senhora, desculpe não aperte minha mão com tanta energia, não me esmague os ossos, o que eu queria dizer era muito prazer querida, o que eu queria dizer, não me desloque o ombro, era muito prazer amor.”(ANTUNES, 1998, p.260)

Nos exageros próprios ao cômico o estranho perde a força. O leitor é tomado pelo lado hilariante da história relatada e a tensão se desfaz pelo riso. Entretanto, há algo que se repete também nessa crônica: a mulher quer o homem a qualquer preço. O amor continua sendo da

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ordem do necessário. A posição do homem é outra: vacila, não quer, acaba sendo coagido, sob ameaça de agressão, a casar com a mulher que havia respondido ao anúncio. Antes de terminar essa sessão, será interessante abordar uma outra crônica, publicada no terceiro livro, que é antagônica a esta que se acabou de analisar. Se nesta encontra-se o reinado do cômico, na seguinte o que predomina é o estranho. A narradora descreve a experiência de estranhamento ocorrida no momento de queda do amor, quando o ser amado cai como um objeto e deixa de ter este estatuto. Fazendo um contraponto às crônicas anteriores, aqui o narrador feminino descreve a destituição do amado, que perde toda a dimensão imaginária, tão necessária para que o amor aconteça. Trata-se da crônica: “Uma laranja na mão”. Essa destituição inicia-se pela descrição mecânica dos gestos do amante, quando tudo perde o sentido:

Assim. Quer dizer, uma das mãos aqui, a outra mais abaixo. As duas mãos mais abaixo. A mão que estava mais abaixo aqui, a mão que estava aqui mais abaixo. Depois pegas-me na cara, depois fechas os olhos, depois beijasme. Depois afastas-te de mim. Depois sorris. Depois esperas que eu sorria. Depois, como não sorrio, deixas de sorrir. Depois uma espécie de alarme na tua cara. Depois alarme mesmo. Depois -passa-se alguma coisa contigo, Luisa? (ANTUNES, 2006, p.23)

A descrição da cena dá a impressão de tratar-se de um ensaio de uma peça de teatro de marionetes, em que os personagens tornam-se bonecos e os gestos são percebidos por alguém que de repente está ao mesmo tempo dentro e fora da cena. O amante, subitamente, é reduzido a um “ponto preto na asa do nariz” (ANTUNES, 2006, p. 24), que a narradora diz nunca ter reparado anteriormente, ou em “sobrancelhas com pelos fora do lugar”(ANTUNES, 2006, p.24). Transformado em coisa excrementícia, desumanizado, o amante, assustado, vai embora. A narradora, ainda na vivência de estranhamento, extrai de si o amado, equiparado a um cravo que ela espreme e vê-se diante do silêncio do real:

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Ao espremer o ponto preto é a ti que espremo, tu inteiro no meu indicador, eu para ti a mostrar-te - Enorme este, não é? Quase do tamanho da lua, quase do tamanho da árvore -o que é que interessa a lua? Quase do tamanho das nuvens cor-de-rosa, cor de tijolo, vermelhas, que o escuro vai engolindo, e não existe a sala, não existe a casa, não existem os nomes, não existe a Luisa, existe eu estendida no sofá, eu calada, eu pequena no quintal, de tranças, com uma laranja na mão. (ANTUNES, 2006, p.25)

A destituição do outro leva a uma vivencia de destituição do eu, que perde seus referenciais identificatórios: a sala, a casa, o nome, até o nome próprio. Diante do desamparo, a mulher, também sem palavras capazes de nomear a estranheza da vivência de perda de si, vê-se “pequena, no quintal, de tranças, com uma laranja na mão” (ANTUNES, 2006, p.26). A frase de Lobo Antunes que dá titulo a esta sessão “que estupidez o amor” (1998, p.169) traduz o que se pretendeu mostrar, pois na vida humana o amor é mesmo estúpido, anda-se sempre em torno dele, buscando algo que ele não pode nos dar, mas a vida sem ele é também outra forma de sofrimento. O amor é, ao mesmo tempo, sempre e nunca. Lobo Antunes diz que em sua obra trata da ausência de amor. Acredita-se que isso não quer dizer que o amor está destituído de sua importância, mas sim que o autor mostra o amor a partir da presença da ausência, dimensão paradoxal do não, fundamental para que ele continue a insistir e não cesse de pedir para ser escrito.

3.4 - Do pai real ao real do pai Uma das formas de o estranho se fazer presente diz respeito a questões relativas ao pai, diz Freud (1919). E o que é um pai? Como conquistar sua herança? São perguntas que atravessam a vida de cada um de nós e que se fazem presentes nas crônicas de Lobo Antunes, particularmente no momento em que o escritor se depara com a eminência da perda do pai. Também Freud sempre andou em torno da questão do pai: foi mobilizado pela morte do pai que ele iniciou sua análise pessoal assim como traçou as primeiras teorizações sobre o

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inconsciente25 (tanto no contexto das produçoes teóricas quanto nos fragmentos da análise pessoal, o pai se faz presente). As memórias relativas ao pai retornam no texto Um distúrbio de memória na acrópole (FREUD, 1936), que tem forte tom autobiográfico.Pode-se dizer que tanto para Freud quanto para Lobo Antunes, a morte do pai é mobilizadora e instigadora da escrita. Antes de prosseguir com a análise das crônicas, será interessante observar como a psicanálise vê as diferentes dimensões da paternidade. Soler (1993) vai desvinculá-las da figura concreta do pai e falar, não apenas da pessoa pai, mas da função paterna. A função paterna faz um contraponto com a função materna, de natureza fusional. O pai, porta voz da lei e da cultura, exerce a função de separar a criança da mãe. Para que essa função seja bem sucedida é necessário que o pai seja capaz de dizer não, pois é ele quem interdita a criança e a mãe. Mas, além do não, é preciso dizer outros sim, pois também cabe ao pai apresentar outras possibilidades de investimento libidinal para a díade criança/mãe, possibilitando a abertura de outros caminhos. Pensando a função paterna a partir dos registros simbólico, imaginário e real, podemos concluir que a dimensão simbólica se faz a partir do Nome do Pai, metáfora que introduz a criança no mundo da linguagem e da cultura, por isso ela é da ordem da palavra. Como consta na Biblia: no princípio era o Verbo. Deus seria a função paterna em sua excelência, Pai com letra maiúscula. Entretanto, quem quer que exerça a função paterna para cada vivente, não a encarna em sua plenitude. A função paterna é inevitavelmente falha. Na impossibilidade do exercício pleno da função simbólica, encontramos a dimensão imaginária do pai. Ela diz respeito ao pai construído a partir do romance familiar, dos mitos que cada um constrói, num misto de fantasia e lembrança, a respeito da própria família. O pai imaginário é o que mais se aproxima do pai visto como pessoa, aquele de quem muito se 25

Vide Correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess 1887-1904, (MASSON, 1986), já mencionada.

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espera (lugar de herói), mas cujo paradigma é a carência, um pai discordante em relação à função paterna. A função real do pai é mais enigmática. Se, como já foi dito no capitulo um deste trabalho, o real se mostra a partir da incompletude do simbólico, essa é a dimensão real do pai. Ela se mostra justamente onde o pai simbólico falha - e necessariamente vai falhar, pois é impossível que ele seja capaz de decifrar todos os mistérios da vida. Portanto, se a dimensão simbólica se faz pela palavra, a dimensão real se mostra pela via do silêncio. De que maneira essas três versões do pai aparecem nas crônicas? Se não resta dúvida de que dados da vida de Lobo Antunes estão presentes nelas de forma às vezes abusiva; as relações do narrador com o “pai real” são interessantes para que, a partir delas, possamos percorrer outras dimensões que permitam chegar ao real do pai, aquele que, de acordo com Freud (1919), dá testemunho do estranhamento. É importante lembrar que referências ao pai real não têm estatuto de verdade; elas também são marcadas pela fantasia. Como lembra Seixo, entretanto, o que importa não são os dados biográficos, mas o potencial de transmissibilidade do texto, sua possibilidade de apontar uma verdade que ultrapasse a vida do autor, inevitável ponto de partida para a escrita. Nas crônicas podem ser encontradas várias figuras da linhagem paterna. São personagens que têm lugares aparentemente diferenciados na relação com o narrador: de herói a anti-herói, da proteção ao abandono, da palavra ao silêncio. O avô paterno ocupa, indubitavelmente, o lugar de herói. Sua presença pode ser constatada já na primeira página do primeiro conjunto de crônicas, pois o livro é dedicado a ele: “A memória do meu avô, António Lobo Antunes (1889 – 1960), de quem tenho tantas saudades.” Dessa forma, o leitor toma conhecimento de que o escritor tem o mesmo nome do avô. A “Crónica de natal” que parece ter como ponto de partida dados autobiográficos que também se fazem presentes nas entrevistas dadas a Blanco, refere-se ao avô António Lobo

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Antunes, cuja presença na vida do narrador é marca de felicidade e proteção: “lembro-me muitas vezes do meu avô, mas lembro-me imenso no natal porque enquanto meu avô viveu foi a época mais feliz da minha vida.” (ANTUNES, 1998, p.195) A crônica tem um tom de leveza e descreve o orgulho e cuidado que o avô em relação ao menino. O avô é símbolo da felicidade reconhecida depois de perdida: com a sua morte, acabam-se os natais e o que resta “sou eu atrás das palavras de um romance.” (ANTUNES, 1998, p.197) Mas, como acontece em várias crônicas, o tempo faz uma reviravolta e retorna vivo: Mas pode ser que para o ano me ofereçam uma pistola de fulminantes e, ao disparar o primeiro o meu avô reapareça, me volte a pousar a mão no ombro, me faça aquela festa que me fazia com o polegar na nuca ( - o meu netinho) E eu sinta de novo a sua força e sua ternura, sinta de novo, como sempre senti, que estando junto dele nunca nenhuma coisa má, nenhuma coisa triste, nenhuma coisa de reles poderia me acontecer porque o meu avô não ia deixar. (ANTUNES, 1998, p.197)

Se o avô paterno é a imagem idealizada da proteção, do antídoto contra o desamparo, o avô materno é sinônimo de enigma e estranheza. As referências a ele estão invariavelmente associadas à surdez e a um alheamento em relação ao mundo à sua volta. Esse avô deixa esses dois atributos como herança para o escritor. Se o primeiro dos livros de crônicas é dedicado ao avô paterno, tão protetor, o segundo livro abre com uma crônica que tem como personagem o avô materno. Com o sugestivo título de “Não foi com certeza assim mas faz de conta” , a crônica mistura memória e fantasia e o avô é apresentado como se fosse a imagem de um objeto poético inatingível, também construído a partir de fragmentos de memória e fantasia: “de pessoa tinha pouco: não me lembro de o ver rir, de o ver comer” (ANTUNES, 2002, p.13) . “Sua presença era uma silenciosa ausência que cheirava a brilhantina” (ANTUNES, 2002, p.13). A ocupação desse avô, como a dos poetas, era com o inútil: “não me recordo do meu avô fazer fosse o que fosse a não ser levitar. De tempos a tempos introduzia o cigarro na boquilha e fabricava nuvens com a boca. Talvez a construção de nuvens constituísse seu trabalho essencial” (ANTUNES, 2002, p.14).

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Se o papel do avô paterno era o de dar contorno, o do avô materno era de desfazê-los, diluí-los em fumaça. Se na crônica anterior o avô retorna para proteger, nesta, o avô é incorporado pelo neto: “Tenho de voltar o mais depressa possível a Beira Alta e encontrar os anjos, com o casaco de linho branco e uma boquilha tomar-me-ão pelo meu avô...” (ANTUNES, 2002, p.15). Sua presença etérea é um convite para soltar-se em direção ao não sabido: Acendo o cigarro e tento uma nuvenzinha desastrada: aos cinqüenta e sete anos chegou a altura de partir também, a caminho do outono, abandonando no armário de inutilidades uma dúzia de livros , que são as chaves desemparelhadas que possuo. Não se pode abrir nada com elas, a não ser portas que deixaram de existir. (ANTUNES, 2002, p.16)

Também é importante referir ao modo como Deus - o Pai eterno - é apresentado nas crônicas, pois encontra-se evidenciada nelas é a dimensão de falha. O Deus que se faz presente nas crônicas não é poderoso. Por exemplo, em “Sobre Deus”, o narrador apresenta as fantasias que nutria em relação a Deus, durante a infância. A crônica apresenta as considerações sobre a impotência de Deus a partir do imaginário infantil, quando a igreja trazia-lhe muito mais medo que conforto e Deus parecia-lhe sempre inadequado: “Deus não me parecia muito asseado ou então contratara uma mulher a dias incompetente” (ANTUNES, 2002, p.89). A representação de Deus Pai também aumentava-lhe o desagrado: “senhor hirsuto, empoleirado numa nuvem e segurando relâmpagos na mão, como os eletricistas.” (ANTUNES, 2002, p.90) Incomodava o desalinho das roupas, as companhias esquisitas. Como um Deus assim poderia entrar em sua casa? Como sendo tão desprotegido poderia proteger? Queria um Deus que em sua casa pudesse ser apresentado às visitas como um homem digno “em lugar de o recambiar para a cozinha a comer com as criadas, depois de pousar seu feixe de relâmpagos nos joelhos como um guarda chuvas a que faltassem varetas”. (ANTUNES, 2002, p.91). Pode-se ver que, ao ser apresentado através de construções imaginárias infantis, Deus é descido do lugar de absoluto, ficando abaixo das pessoas com as

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quais o narrador convivia; seu feixe de relâmpagos - símbolo do poder - fica reduzido a um guarda chuva estragado, onde faltam varetas. Deus não é reconhecido na função paterna absoluta, ou seja, não há pai algum capaz de dar proteção absoluta ao desamparo. Já a figura do pai encontra-se nos textos marcada por contradições. Na crônica “Hoje apetece-me falar dos meus pais”, o narrador refere-se a uma sensação constante de carência durante a infância, uma vez que, como filho mais velho, viu-se abandonado pela mãe “uma rapariga linda” (ANTUNES, 2002, p.297), devido aos cuidados dedicados aos irmãos rivais que lhe sobrevieram: Um dia, no intervalo de uma mamada o meu pai perguntou-me - Queres ver? Apertou o peito da minha mãe, saiu um jorro de leite e fiquei de boca tão aberta que não me recompus até hoje. (ANTUNES, 1998, p.298)

Particularmente no terceiro livro, as crônicas trazem uma reflexão sobre a temática do pai. A presença do pai parece justificar-se por um fator biográfico: o pai de Lobo Antunes encontrava-se então no final da vida e, de fato, a última crônica refere-se à sua morte. Com essa temática da peternidade o autor parece fazer uma amarração dos temas: escrita, silêncio, vida e morte no Terceiro Livro de Crónicas. Pode-se dizer que a figura do pai se apresenta a partir de todos os três registros: simbólico, imaginário e real, cada um enfatizado em diferentes momentos, sendo que na crônica “Ajuste de contas” essas três dimensões são apontadas. Se o pai imaginário tem como paradigma sua carência em relação a sua função, essa falha se apresenta numa freqüente queixa de frieza, de excesso de austeridade e falta de explicitação de amor. Essa falta de amor é mencionada em diferentes crônicas, desde as publicadas em 1998, e se apresenta de maneira ambígua: “um mérito ele e minha mãe tiveram e estou-lhes grato por isso: não me encheram de amor e atenção, o que teria matado em mim o artista.” (ANTUNES, 2006, p.290) . É como

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se o narrador sempre se queixasse e suspendesse a queixa, registrando-a pela negativa: vocês não me deram amor, ainda bem. Enquanto representante da lei e da cultura, o pai é mostrado como rigoroso diante da lei, culto, inculcando “um ódio impiedoso a três coisas: a desonestidade, a covardia e a falta de rigor.” (ANTUNES, 2006, p.290). Aqui a dimensão simbólica se faz em detrimento da imaginária: “Não existiram entre nós efusões, confidências, pieguices: não era meu amigo, era apenas meu pai” (ANTUNES, 2006, p.290). Sua cultura e amor à arte e ao saber se fazem presentes nas conversas relatadas que o narrador teria tido com o pai que permitiram abrir portas para o mundo e são reconhecidos pelo narrador em seu acerto de contas com o pai morto. Mas a dificuldade de externar os afetos permanece na hora final: “Claro que chorei: por ele, por mim, pela incompreensível finitude da vida” (ANTUNES, 2006, p.291). Afirma ser difícil vê-lo morto, a morte traz consigo o real do desamparo e, só então, chamando pelo pai imaginário, aparecendo como um narratário, que o narrador termina a crônica: “foi graças a si que não morri da meningite. Não pense que me esqueço. Não esqueço. Paizinho” (ANTUNES, 2006, p.292). A dimensão afetiva recusada porque tida como “piegas” e, diante da qual o narrador resistia, aparece na última palavra do texto e, também, do livro. Parece que nesses momentos ocorre o que defende Blanchot: O imaginário adquire o poder, não de tamponar o real, mas de evidenciá-lo, pois a idéia da morte como perda é transmitida com muito mais força para o leitor. A dimensão real do pai está mais freqüentemente associada ao silêncio. Na relação com o ele, ressoam ecos do passado, de uma solidão vivida em presença do pai. Se, no que diz respeito ao avô materno, esse silêncio fascina, quando se trata do pai, causa desconforto, sensação de exílio: Os meus pais foram jantar comigo em Abrantes: não teriam sido precisos facas nem garfos: comemos silêncio o tempo inteiro e conservo comigo esse sabor. É igual a morte: dói, depois amansa. (ANTUNES, 2006, p.83,84)

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O silêncio é via de mão dupla, o narrador/filho várias vezes diz ser difícil falar ao pai:

Com meu pai nunca falei de mim: apetecia-me tanto, às vezes. Se ao menos fosse capaz de falar do mais secreto de mim mesmo. Faço-o nos romances: deve ser por isso que não os releio, por estar ali despido. (ANTUNES, 2006,163).

Se para Lobo Antunes escrever, lembrando Fernando Pessoa, é uma necessidade imposta pelo “emissário de um rei desconhecido que cumpre instruções do além” (ANTUNES, 2006, p.194), parece que a determinação se faz no sentido de escrever aquilo que não pode ser dito. Evocações de memórias do pai nos dois primeiros livros são mais raras do que de outras figuras relativas à linhagem paterna, tais como os avós; já no terceiro livro essas memórias são reincidentes. Certamente não é por mera coincidencia que nele encontram-se também com mais freqüencia referências à dualidade vida e morte, silêncio e escrita. Lobo Antunes parece se mostrar mobilizado diante do pai velho, próximo à morte. O meu pai, ao jantar, subitamente velho. Longe dele não é este o pai que lembro. Nem esta a mãe. Velhos ou disfarçados de velhos a enganar-me? Disfarçados de velhos, é claro. Não morram. Vejam-me lá isso, como dizem os mecânicos, não morram. (ANTUNES, 2006, p. 60)

Percebe-se aqui um estranhamento diante da possibilidade da morte do pai, o que o narrador tenta controlar pela via da ironia. Essa possibilidade da perda também gera impulsos de aproximação, que o eu vacila em se permitir ou não:

De repente, sei lá porque, apeteceu-me dizer - Paizinho Eu que nunca disse - Paizinho E é evidente que - Paizinho Nenhum, Deus me livre de mariquices. Qual paizinho: roço-lhe a cara com um beijo e é um pau. Mas, já que chegamos aqui, veja lá se não morre.(ANTUNES, 2006, p.150)

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Aqui encontra-se algo que é frequente nos três livros, quando os narradores das crônicas se referem a vínculos afetivos: o amor nunca pode ser admitido ou é falado e depois negado ou afirma-se pela negação. Como já registrado, o significante paizinho, tão almejado e temido, só pode ser proferido depois do pai morto. Já no primeiro livro de crônicas o narrador refere-se ao “estratagema da família: mal a gente se comove começa a discutir Herculano, Antero ou Eça de Queiroz” (ANTUNES, 1998, p.351), os mestres do realismo português. Aqui o realismo parece ser uma forma de fugir de um outro real, que se encontra além do realismo e pretende-se ocultar. Há uma aspiração de ser capaz de nomear os afetos pela via da escrita, um receio de fazê-lo e, ao mesmo tempo, uma urgência diante do implacável da morte:

quero ter tempo para ganhar coragem e dizer a meus pais que gosto muito deles (não sei se consigo) Dizer aos meus pais que gosto muito deles antes que anoiteça senhores, antes que anoiteça para sempre. (ANTUNES, 1998, p.329)

Como já afirmado anteriormente, essa evocação do nome do pai é mais insistente no terceiro livro. A crônica “Você” tem o pai como narratário e a ênfase recai sobre o silêncio do pai: Nunca falamos muito (acho que nunca falamos nada) E não sinto necessidade de começar agora. O que poderia lhe dizer? Existem séculos e séculos de silêncio entre nós e, debaixo dos séculos de silêncio, ocultas lá no fundo, se calhar esquecidas, se calhar presentes, se calhar apagadas, se calhar vivas e a doerem-me, coisas que prefiro não transformar em palavras, coisas anteriores às palavras...(ANTUNES, 2006, p.125)

Essa crônica é entretecida de dualidades: silêncio e escrita, morte e vida. Num primeiro tempo o narrador refere-se a perguntas que não foram feitas, curiosidades não satisfeitas. A crônica desliza para uma oscilação entre as marcas da morte e a vida:

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“dou por mim agora a olhar sua cara devastada, os olhos fechados”(ANTUNES, 2006, p.125) Seguidas pela ternura da vida: “Você abre os olhos (continua a surpreender-me que sejam azuis)” (ANTUNES, 2006, p.126) Na medida que os afetos não podem ser explicitados, o vínculo se faz a partir da arte, espaço simbólico onde uma fala se faz possível entre narrador e narratário. Pela via da enunciação, para lembrar o silêncio recém-mencionado, aparece uma frase aparentemente descontextualizada: “na janela a figueira”(ANTUNES, 2006, 126). A conversa com o pai gira em torno de Schubert – música que impressiona pelos silêncios e Sá de Miranda, escritor de quem o pai lembra o verso: “incertos muito mais que ao vento as naves” (ANTUNES, 2006, p.126). A arte é vida que traz a incerteza. Mas, de súbito, a percepção do corpo próximo da morte intromete-se na conversa e grita, escancarando a estranheza:

A boca descai-lhe, os músculos desapareceram, faz-me lembrar uma raiz seca lavrada de ossos. Por onde andará o sangue, que só lhe vejo dentes e ossos? - Tenho uma data de anos. E é isso que você tem de facto, anos, dentes e ossos. Imensos anos (ANTUNES, 2006, p.126)

Escrita e morte fazem um jogo de frente e verso, um leva ao outro. “Então penso que você pode ter todos os defeitos do mundo mas era de certeza o único pai que pregou no quarto de um filho adolescente o retrato de Charlie Parker” (ANTUNES, 2006, p.127). Apesar das fraquezas, surgem lembranças de momentos que recuperam o lugar do pai e socorrem o narrador. Charlie Parker é um personagem já evocado pelo autor para referir-se a influências decisivas em sua vida de escritor, na crônica “De Deus como apreciador de jazz” (2002, p.

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131). Aqui é o pai, a quem é subitamente atribuído o lugar de herói, quem dá a mão ao ídolo saxofonista. “Escrever como Charlie Parker tocava, à custa do mesmo sofrimento, a fim de trazer alegria aos que lêem” (ANTUNES, 2006, p.127). Mas, de novo, a morte retorna. Em oposição ao movimento do músico, está o anúncio da morte à janela e na perda de movimentos do pai. Jogados, como que ao acaso, no meio do texto lê-se: “O que é que a puta dessa figueira espera para dar folhas e flores?” (ANTUNES, 2006, p.127) parecendo indicar a angústia do narrador diante da presença da morte vista no pai e desviada para a figueira que pode ser vista da janela. A crônica termina com uma reflexão sobre o silêncio. Se no início o silêncio se referia a fatos ou afetos não revelados, no final aponta para o indizível: E ao descer as escadas dou-me conta de que afinal não existe nada debaixo dos tais anos de silêncio. Quero dizer, quase nada: existe um filho cheio de coisas que prefere não transformar em palavras enquanto muito longe, um saxofone principia a tocar. (ANTUNES, 2006, 127)

Pode-se comparar o lugar paterno no Terceiro Livro de Crónicas com o que é atribuído ao pai no poema “Viagem na família”, de Carlos Drummond de Andrade (1988, p.91). Nesse poema, o eu lírico convoca o pai morto e pede, em vão, a palavra do pai para socorrê-lo. O pai toma o filho pela mão e levando-o de volta à infancia, juntos fazem uma “viagem na família”, à cidade natal, aos mortos, aos familiares, à casa. O passado retorna e o mundo é reconstruído pela memória. “Há um abrir de baús e de lembranças violentas”(ANDRADE, 1988, p.91). Porém, apesar da insistência do filho, o pai se mantém em silêncio.Se o pai simbólico dá a palavra que permite ao poeta escrever o poema e construir sua história, o que significa o silêncio do pai ? Poderíamos dizer que a dimensão real do Pai é que é enfatizada nesse momento. Há um furo no simbólico, em outras palavras, também o pai é marcado pela impossibilidade de tudo dizer. Assim, o pai se desfaz em barro, em sombra e em seu silêncio está o silêncio da linhagem do pai, como também a impossibilidade de

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responder a tudo. É como se Drummond, com outras palavras, repetisse o apelo de Cristo na cruz, que o poeta reproduziu no Poema de Sete faces: “Pai, porque me abandonaste?” (ANDRADE, 1988, p.5) E só a partir do reconhecimento dessa impossibilidade de tudo dizer que uma reconciliação com o pai se torna possível. O pai da novela familiar, que se fez presente na mágoa, na incompreensão, “na velha revolta a dividir-nos no escuro” (ANDRADE, 1988, p.91). O pai simbólico se apresenta naquilo que ele traz como portador da interdição e, ao mesmo tempo, como submetido ao interdito. Apesar da “falta de beijos”, carências relativas ao pai imaginário,

pode então abraçar o pai-homem-castrado

reconhecendo-o como pai e obtendo o seu perdão. Perdão que leva, ao mesmo tempo, à sua perda enquanto possibilidade de salvação da queimação do fogo da vida, e ao ganho da possibilidade de apaziguar a relação com a imagem do pai, num movimento de recuperá-lo e ao mesmo tempo, perdê-lo. Afinal, pai algum pode salvar do desamparo, condição essencial da existência humana. Pode-se pensar que, ao longo do Terceiro Livro de Crónicas, a presença do pai também vai sendo tomada pela via de cada um dos registros e no acerto de contas, a sua herança é questionada pelo narrador: “Em que medida foi importante para mim? Amava-o? Faz-me falta? Como responder a essas tres questões?” (ANTUNES, 2006, p.290). Nos momentos finais do pai – aqui a referência é biográfica – um acerto de contas com ele se impõe. O autor decide fazer isso via escritura. Escreve o que não pôde dizer, escreve também o que é impossível ser dito. Como Drummond, queixa-se da falta de beijos, dos silêncios do pai em sua função paterna inevitavelmente falha. Também no que diz respeito à morte, o tempo não traz necessariamente o remédio: “amansa, depois dói, depois amansa de novo. Adiante.”(ANTUNES, 2006, p.84) O movimento é de ritornello. É preciso voltar ao pai, quantas vezes forem necessárias para conquistar sua herança.

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3.5 – “Haverá vida antes da morte?”

A morte, segundo o próprio Lobo Antunes, constitui uma temática reincidente em sua obra. Como avesso e direito que se misturam numa estrutura moebiana, morte e vida são temáticas indissociáveis. Lobo Antunes faz questão de nos mostrar isso em suas crônicas. A sua frase que serve de título a este tópico: haverá vida antes da morte? é bem ilustrativa do assunto que se pretende tratar aqui, uma vez que nela, a vida é colocada como inseparável da morte. É importante lembrar que morte aqui não se limita a ser sinônimo de fim de vida, mas muito mais: trata-se de uma experiência de ruptura, de descontinuidade. Uma forma usual de se nomear o estranho – o que não é nomeável – é pela via da morte26. Afinal ninguém sabe o que é a morte, pois é só na condição de vivo que se pode falar dela. Em relação à morte só se podem fazer conjecturas. Mas Lobo Antunes mostra que há experiências em que o anjo sem rosto da morte se apresenta, produzindo linhas de fuga que quebram o texto e levam escritor e leitor por nevoeiros obscuros. Um exemplo disso está nas crônicas que o autor escreve a partir da doença do pai, já mencionada no item anterior: A boca descai-lhe, os músculos desapareceram, faz-me lembrar uma raiz seca lavrada de ossos. Por onde andará o sangue, que só lhe vejo dentes e ossos? - Tenho uma data de anos. E é isso que você tem de facto, anos, dentes e ossos. Imensos anos (ANTUNES, 2006, p.126)

Pode-se dizer que, nas crônicas de Lobo Antunes, a morte se apresenta em diferentes contextos. Talvez o mais insistente deles seja da morte presente na vida do narrador. Ela se mostra nas marcas do envelhecimento, na sensação de que o futuro se estreita, na infância

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Convém esclarecer que pulsão de morte – conceito freudiano inventado para explicar o que no psíquico é da ordem da ruptura - guarda semelhanças, embora não seja sinônimo, com a morte biológica. Se a pulsão de morte é silenciosa, a morte também o é. Se a pulsão de morte não tem representação, a morte também não. Se é a morte que move a vida, se o vivente só preza a vida porque se pergunta sobre a morte, também é a pulsão de morte que faz pano de fundo para a pulsão de vida. Também já foi mencionado no capítulo um que Freud inventou o conceito de pulsão de morte para se referir ao que se encontra além do principio do prazer, além do domínio da representação. Freud afirma que a pulsão de morte, embora sempre presente, é muda, por isso precisa da pulsão de vida para se apresentar. É silêncio que se faz presente no emaranhado das palavras. (FREUD, 1920)

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nostalgicamente perdida e numa sensação de enfado em relação à vida, tudo paradoxalmente, misturado com um inconformismo diante da morte. Essa morte na vida do narrador pode ser encontrada nos três volumes de crônicas, ficando mais insistente no terceiro livro de crônicas. Veja-se como esse tema é trabalhado na crônica “Chega uma altura”. No início do texto, a morte é uma presença amiga: E chega uma altura em que se começa a conviver com a morte como se fosse uma amizade antiga, alguém que está para aí, numa cadeira qualquer, sem incomodar a gente, amável, quase simpática, a olhar-nos por cima dos óculos com uma revista nos joelhos. (ANTUNES, 2006, p.27)

A morte aí aparece como se estivesse domesticada, assimilada pelo cotidiano. Um pouco mais adiante, essa primeira versão se esvai e a morte vai ficando cada vez mais desvanecente, marcando a vivência de falta de pertencimento: “água num ralo, um estalo de cômoda, um adeus atrás do vidro” (ANTUNES, 2006, p.27), sua presença vai-se tornando mais impalpável no decorrer da crônica, impalpável que toca também o indizível: Chega uma altura em que a morte nem - olá Sequer dado que se não diz - olá A nós mesmos, em vez de - olá anoitece, nós diante do espelho de barba e no espelho não mais que os azulejos em frente...(ANTUNES, 2006, p.28-29)

O questionamento da morte leva inevitavelmente a um estranhamento diante vida, vida que se mistura com a morte: ...chega uma altura em que não se grita, não se protesta, fica-se mudo, submisso, à espera, suspensos dentro da gente como cegonhas de pata levantada, chega uma altura em que nenhuma pergunta fazemos, nenhuma voz responderia se a fizéssemos, chega uma altura em que me chamo António Lobo Antunes e chamar-me António Lobo Antunes não tem sentido... (ANTUNES, 2006, p.28)

O parentesco amigável com a morte vai-se desfazendo e “chega uma altura que somos nós a tal parente na ponta da toalha” (ANTUNES, 2006, p.29). A morte atravessa o umbral do

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espelho e torna-se um duplo do eu. Mas que também

vai aos poucos trazendo um

apagamento: “chega uma altura em que se acabou a cara, acabou a sombra”... (2006, p.30). No final da crônica, a morte é tida como pura alteridade: “uma coisa me substitui, uma coisa com minha roupa que se aparafusa numa caixa”(ANTUNES, 2006, p.30)

A “Crónica de hospital”, atribuída a Lobo Antunes e publicada na Internet dia 28 de abril de 2007, traz algo de interessante para esta reflexão. Teria sido escrita enquanto Lobo Antunes se encontrava internado no hospital e, de acordo com o narrador, onze dias depois de ter sido operado de um câncer. Ou seja, é um texto escrito “a quente”, a partir de uma experiência imediata com a morte. Comparando com a crônica anterior em que o narrador faz conjecturas em relação à morte e ao morrer, aqui a escrita se faz a partir de uma trombada com a possibilidade real da morte. O narrador se mostra espantado com seu espanto: “por mais que repetisse – um dia destes, não acreditava que o dia destes chegasse”. Dá-se conta de que há “um bicho horrível em mim, ratando ratando.” Diante do excesso da intrusão, da invasão bárbara do câncer, fica, de inicio, dividido entre dois sentimentos: lutar e não lutar. “E o primeiro fala antes do outro.” É interessante porque em nenhum momento o autor se coloca como hábil para lidar com o horror da ameaça da morte: é doloroso e “tão pouco digno como a velhice e a decadência”. O autor se desculpa pelo texto “um pouco desconexo, desculpem, ainda estou fraco, a cabeça tem lacunas, falta-me vocabulário, há mais de nove dias não pegava numa caneta e é difícil reaprender a andar”. A escrita continua sendo sua tentativa de expressar o que não tem palavras, única forma buscada pelo autor para dar movimento à vida. Como afirma Brandão (2006), alguns escritores escrevem para sobreviver. Mais adiante, na crônica, encontra-se uma frase que não se sabe se é um lapso do escritor ou do digitador: “Espero que na revista entendam a caligrafia temida da crônica.”

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Temida ou tremida? O lapso, como sempre, é bem sucedido e acaba por revelar mais do que se pretende conscientemente. A crônica como um todo e o lapso em particular mostram que, de acordo com o próprio autor, “as chaves que possuímos são desemparelhadas. Não se pode abrir nada com elas, a não ser portas que já deixaram de existir” (ANTUNES, 2002, p.16). Nada que o escritor tivesse produzido em torno da temática da morte foi capaz de reduzir seu horror diante da sua possibilidade eminente. Falar de morte não nos ensina a morrer. E não só isso, apesar de tanto falar da morte, a vontade de viver é que prevalece, levando-o a afirmar que a vida não será mais a mesma depois do ocorrido. O que esperar do amanhã? A crônica retorna à questão da escrita, do romance terminado e do que iniciou, e é o poético que circunscreve o sentimento de estranheza diante da morte: “E eu, já agora, quero-me? Sim. Não. Sim. Não-sim. Por enquanto meço o meu espanto, à medida que nas árvores da cerca uns pardais fazem ninho.” Sua alternância entre querer e não querer inicia-se por um sim, e termina também com um sim e seu movimento é de ver a vida a se renovar através dos pardais.

Outra forma de aparecimento da morte está relacionada à perda de pessoas queridas. A perda de amigos e parentes – fatos da vida de Lobo Antunes – torna-se tema de várias crônicas, em que o narrador se mostra inconformado diante da radicalidade da separação operada pela morte. A crônica “No Porto com Egito Gonçalves” é um caso desses. Aqui a dor da perda é macerada de tal modo que a morte é aparentemente negada. O amigo escritor é descrito como um personagem/ herói da adolescência: o mosqueteiro Aramis. O contato primeiro com Egito Gonçalves, através de antologia poética, teria sido uma revelação tal que levou o narrador a rasgar o que havia escrito e voltar ao princípio. Através da escrita, o narrador busca resgatar experiências literárias partilhadas.

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Nessa crônica o que é enfatizado é a gratidão enorme pelo amigo, com quem pode “aprender a cidade com os teus olhos, viajar com o teu rosto” (ANTUNES, 2002, p.157). Também agradece pelo reconhecimento do amigo quanto à importância de seu trabalho. “Recordo-me de cartas tuas da Hungria, da Finlândia, falei nos teus romances António, querem conhecer-te António” (ANTUNES, 2002, p.158). Retorna à imagem do mosqueteiro protetor. “Sempre achei que trotavas a meu lado num cavalo invisível, como compete a um espadachim” (ANTUNES, 2002, p.158). A dor da perda é, ao mesmo tempo, explicitada e negada de maneira jocosa: “O que egoisticamente me preocupa é como estarei no Porto sem ti. É óbvio que fico (mas não digo que fico) um pouco magoado contigo.”(ANTUNES, 2002, p.158) O narrador faz sua homenagem “Perdôo-te porque não eras só Poeta. Eras Poesia e por isso te respeito e admiro” (ANTUNES, 2002, p.158). O narrador passa então a fazer troça com a inevitabilidade da morte e com a dor da perda irreparável causada por ela, através de uma aparente negação do tempo e da morte. Na verdade, parece querer mostrar justamente o avesso: a intensidade da sua dor:

“Mas caramba, custava-te assim tanto esperares um bocadinho que eu chegasse? É a primeira vez que me pregas uma partida e a primeira vez desculpa-se sempre. No entanto previno-te desde já: livra-te de tornares a morrer. E agora que acabaram as ameaças da-me aí um abraço do costume e vamos embora” (ANTUNES, 2002, p.158).

A mistura dos tempos funde passado, presente e futuro e, sem falar, permite visualizar a dor da perda: “E quero ver o teu braço no ar, à despedida, esse braço que erguias sempre acima da cabeça antes de partires, à desfilada, a caminho de novas aventuras.”(ANTUNES, 2002, p.159) A prevalência excessiva do imaginário lembra o discurso de uma criança que desconhece a radicalidade da morte. Esse movimento, que num primeiro momento parece ter

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como intenção encobrir o real da morte, acaba por exercer a função de evidenciá-lo. A recusa em aceitar a morte torna a dor da perda mais pungente. Pela via do texto, o narrador traz de volta os seres amados irremediavelmente perdidos e transmite a intensidade de sua dor, o leitor também fica contaminado com o sofrimento da perda. Na última frase da crônica, Egito Gonçalves está presente, num futuro próximo, acenando com o braço, mas o movimento é de partida para “novas aventuras.”

Uma terceira forma de tratar a morte nas crônicas diz respeito às vivências ligadas à morte no hospital ou na guerra de Angola. No que diz respeito à guerra, em nenhuma das crônicas, o narrador se coloca no lugar de herói, assim como não se mostra em momento algum como estando a favor de Portugal ou de Angola, nem dos representantes dos movimentos revolucionários de esquerda (MPLA) ou de direita (PIDE). Como acontece no romance Os cus de Judas, a guerra é vivenciada pelo narrador como uma experiência absurda, em que não existe lado certo ou errado. A morte de pessoas nesse caso não diz respeito exatamente a perdas afetivas. O que dá origem à escrita e é transmitido ao leitor refere-se principalmente a um contra-senso inerente ao viver. Nesse contexto, a vida se apresenta nua e crua. Parece que o mal-estar da guerra ressurge como algo que toma o autor e o obriga a escrever. Na crônica “Emília e uma noites” o narrador justifica-se, afirmando que queria escrever outra coisa, mas “Angola me veio com toda força ao corpo.”(ANTUNES, 1998, p.183). A experiência é corporal, tem a força do vivido. O narrador faz uma separação entre o que é tido como seu estilo de escrita e o que produz nesse momento: “Não vou ter humor nem ser inteligente nem subtil nem terno nem irônico” (ANTUNES, 1998, p.183). E afirma: “eu acuso a guerra de ter mudado a minha vida” (ANTUNES, 1998, p.183). A crônica é um grito diante dos horrores e se, de acordo com o narrador, a escrita é feita com raiva e com

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pressa, talvez sua finalidade seja de libertar o narrador das dores incontidas que o tomam: “será que se consegue soltar um grito devagar?” (ANTUNES, 1998, p.185). A crônica “078902630RH+” tem um tom semelhante. O narrador faz uma contraposição entre uma literatura que teria como objetivo apresentar o belo de um lado e, de outro, a necessidade de vomitar o horror causado pela experiência da guerra. O vômito diz respeito ao que não pode ser digerido e por isso retorna, e retorna com um aspecto avesso ao da beleza, causando nojo. Como afirma o narrador: Isto regressa como um vómito e tenho que falar nisto. E vocês têm de ouvir porque eu continuo a ouvir. Mesmo que eu escreva isto mal porque estou a escrever com o sangue dos meus mortos. Não posso esquecer. Não consigo esquecer. Porque no dia em que esquecer mereço que alguém pregue a minha medalha no primeiro caixão. Escrevo mal porque estou a escrever com o dedo na terra. Não é uma crônica, não é já um vómito, são lugares comuns se calhar mas não importa. (ANTUNES, 2006, p.112)

O narrador escreve porque não esquece, escreve porque precisa esquecer e escreve porque não se permite esquecer. “Fica aqui.” (ANTUNES, 2006, p.111) afirma, como se a escrita pudesse dar um ponto final ao sofrimento.

A literatura é de outra ordem, pois é

escrita com sangue, com o dedo na terra, como se não fosse apenas mediada pelas palavras, mas algo vivo (sangue, terra) pudesse escorrer no interstício delas. Escreve-se com o próprio sofrimento, numa escrita em que o estranho se insinua. Seria literatura? Pergunta-se o narrador. Seria letra - pergunta-se - entendida como aquela que sulca o texto para que o real tenha voz? Estar na guerra teria sido um ato de covardia? A experiência da guerra o teria matado também? A violência, da qual foi não apenas vítima mas agente, é lembrada, e a crueza é mostrada sem atenuantes, com palavras sem enfeites, no prisioneiro sem pernas, na mulher que aplicava choques elétricos “nos tomates” dos prisioneiros, no alferes a “borrar-se” de medo, na lembrança do primeiro morto e na escolha do próprio caixão. Com a subjetividade perdida, cada um era reduzido à impessoalidade de um número acompanhado do grupo

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sangüíneo. É na posição de quem foi irremediavelmente rasgado pela vivência da guerra, pelas perdas, pelo aprisionamento que o narrador termina a crônica: E tenho nojo de ser gente. No interior de mim não passo de um prisioneiro sem pernas, amarrado no guarda lamas do rebenta-minas, gritando. Se eu saltar com o rebenta-minas que fique, ao menos, o eco do meu grito. Completem essa crônica vocês, os que cá ficam. 078902630RH+. Filha. (ANTUNES, 2006 ,p.114)

O narrador quer correr diante do horror da própria escrita, deixando o lugar para outro, para os que ficam. Ele se despede (da escrita? dos leitores? da vida?), mas parece pedir à filha para que fique em seu lugar. Essas experiências parecem ter contribuído para “obrigar” o autor a dedicar-se à literatura, que afirma escrever por imposição e não por escolha. Diante de experiências de ruptura ligadas à morte, o real, impossível de ser simbolizado, apresenta-se como causa da escrita. Refere-se, por exemplo, ao pé de uma criança morta, embrulhada num lençol: “Às vezes ocorre-me pensar que é para esse pé que escrevo. Há coisas que se pegam à gente, não nos largam, insistem, sem que compreendamos o motivo” (ANTUNES, 2006, p. 67). A morte fica como uma espécie de pivô, em torno do qual giram as experiências da vida. O significante morte, aqui, pode estar relacionado tanto à temática da morte entendida como fim da vida, quanto da morte presente na vida; tanto nas relações do narrador consigo mesmo, quanto na pobreza dos afetos nas relações amorosas e na estereotipia presente nas relações sociais em círculos mais amplos. É desse tema que vai-se tratar no próximo item.

3.6 – Tenho medo de gente Essa frase proferida por uma criança foi escolhida para nomear esta subseção, porque, acredita-se, ela reflete o modo como o narrador das crônicas se posiciona diante da vida social.

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Dos três livros de crônicas, é no primeiro que podem ser encontradas as que mencionam com mais freqüência as relações sociais, criticando a inconsistência dos valores, a estereotipia dos comportamentos. No livro que contém as publicações dos trabalhos apresentados no congresso que teve como temática A escrita e o mundo em Lobo Antunes, os trabalhos apresentados sobre as crônicas se restringem ao volume um, único que tinha sido editado até a época do evento. Nesses textos, os autores enfatizam a importância da crítica aos valores da sociedade portuguesa que podem ser encontrados nas crônicas e nos romances. Por exemplo,

Ramon aponta dois caminhos interpretativos: o primeiro consistiria em

deambular pelos “arrabaldes do percurso autobiográfico” (RAMON, 2004, p.188) e outro que consistiria no “subúrbio de um realismo social urbano” (RAMON, 2004, p.188). Por esse veio, a temática giraria em torno da “massificação dos comportamentos, a desumanização dos espaços, a solidão, a mediocridade, o fracasso, o abandono”(RAMON, 2004, p.188). Nesse caminho interpretativo a autora conclui que Lobo Antunes traça uma geografia de um Portugal fraturado, habitado por criaturas destituídas do “estado de graça.” (RAMON, 2004, p.188). Ampliando suas considerações para além das fronteiras de Portugal, Ramon acaba por considerar que Lobo Antunes, em suas crônicas, faz uma “alegoria da dissonância do mundo moderno”(RAMON, 2004, p.192). Numa direção parecida, Lourenço afirma que Lobo Antunes refere-se a uma realidade que não é só de Portugal, mas toca no que há de universal no ser humano. A imaginação de Lobo Antunes emergiria como a de um náufrago na “luta com as ondas do mar para arrancar a esse presente o seu mistério” (LOURENÇO, 2004, p.351), implicando o leitor nesse mistério. A ficção de Lobo Antunes revelaria aquilo que “não queríamos ver” (LOURENÇO, 2004, p.351). Ora, tanto a expressão “geografia de fraturas”, quanto “a revelação daquilo que nós mesmos não queríamos ver” (LOURENÇO, 2004, p.351) aproxima-se do que se quer mostrar

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aqui a respeito do que é observado nas crônicas, uma vez que nesta tese, defende-se que a noção de real ultrapassa a de realismo. As crônicas passam pela realidade, esgarçando-a, de modo que o estranho tenha lugar. Como afirma o narrador da crônica “Receita para me lerem”, questões de ordem política, social ou antropológica podem ser importantes, mas “nada têm a ver com meu trabalho” (ANTUNES, 2002, p.110). Por isso, interessa apresentar as relações sociais também a partir da estrutura moebiana. Ou seja, acredita-se que não se pode fazer uma separação radical entre interior e exterior, pessoal e social. Esses registros se implicam mutuamente. O eu e o social são fragmentários, são inconsistentes e por isso a relação do eu com o Outro é como um espelho diante de outro espelho, interferindo-se e produzindo múltiplas imagens. A condição humana de desamparo leva inevitavelmente à busca de soluções no campo do Outro, mas nenhuma das estratégias vai trazer a garantia tão almejada e a felicidade buscada escapa de nossas mãos. Se isso acontece no campo do amor, como pretendeu-se demonstrar, também se repete na impessoalidade das trocas sociais. Na crônica “Volto já” o narrador fala de sua dificuldade de se adaptar ao mundo, na medida em que se vê como uma “criatura jurássica incapaz de ultrapassar os obstáculos da existência” (ANTUNES, 1998, p.291). Por isso, clama por um pedido de altas. Gostaria de dar uma escapada da vida, assim como fazem os funcionários dos centros comerciais ao deixarem pendurado um cartaz anunciando: “volto já”. O narrador quer fugir do mundo contemporâneo com suas quinquilharias consumistas, escapando “por entre esplanadas de pizzas e sapatarias de botas militares” (ANTUNES, 1998, p.291) e adolescentes “gritando-se palavras de passe na linguagem heavy-metal” (ANTUNES, 1998, p.291). A sensação de inadequação o leva a querer voltar para um tempo “em que o futuro não estava ainda atrás de mim” (ANTUNES, 1998, p.291), onde se sentiria protegido contra a angústia e a morte pelas orações da avó. No tempo em que acreditava poder “recomeçar o mundo como quem recomeça um capítulo e a ordenar as emoções de acordo com meus caprichos” (ANTUNES,

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1998, p.291). Na infância, apenas se irritava com “a franja loira que me tapa as pestanas e impede os gorilas de cabaré de me deixarem entrar em caves repletas de velhotes calvos e mamalhudos, todos iguais ao general Franco” (ANTUNES, 1998, p.292). Esse era o tempo em que sonhava com o mundo dos adultos povoado de fantasias sobre “decotes de andaluzas generosas, hábeis de mãos, profusas de rubis” (ANTUNES, 1998, p.292). No presente, os parentes e amigos preocupados o encontram ou “a olhar para o tecto, ou a escrever, formas idênticas de ser inútil” (ANTUNES, 1998, p.292). A escrita, estratégia a que recorre no momento, também não é solução.27 Não está colocada hierarquicamente como superior às que encontra no dia-a-dia. O narrador, ao buscar um passado nostálgico e não encontrá-lo, confessa-se órfão e termina a crônica num tom melancólico: De modo que fico por ali, de mãos nos bolsos, hesitante em partir, relutante em ficar, com a suspeita de que não seria má idéia dar um nó na vida para não me esquecer dela. (ANTUNES, 1998, p.292)

A referida estrutura moebiana está evidenciada nessa crônica, pois o mal-estar está ao mesmo tempo fora e dentro, tanto nas banais soluções oferecidas pelo mundo contemporâneo, quanto no mundo interior do narrador. A crônica “Os meus domingos” (1998) trata com um tom humorístico o tema que é a estereotipia dos costumes nos dias atuais, quando todas as pessoas se vestem da mesma forma, freqüentam os mesmos lugares, compram os mesmos objetos, usam os mesmos slogans. Pela via da ironia, observa-se um exagero de imagens que retratam um narrador que se confunde e troca de mulher ou leva outro filho para casa e não dá pela diferença, uma vez que todas as esposas e todos os filhos são iguais. Tudo parece pertencer a uma linha de montagem de produção em série. Dessa maneira, o mundo do mesmo, do conhecido torna-se

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Novamente aqui, Lobo Antunes lembra o poema de Drummond, diante da vastidão do coração, a escrita não se apresenta como solução.

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absurdo e por isso dá lugar ao nonsense, que, de acordo com Freud, é uma das moradas do estranho. Também marcada pelo humor e pela denúncia do nonsense da vida moderna é a crônica “Os computadores e eu” (1998). Assim como na crônica anterior, os costumes da vida contemporânea são considerados enlouquecedores. Nessa crônica o narrador se confessa absolutamente avesso e incapaz de lidar com as tecnologias do mundo atual. Compara essa dificuldade com a dos povos africanos perdidos entre a tirania da PIDE e as exigências da MPLA (grupos de direita e de esquerda). Identificado com o soba africano, repete o ensinamento deste ao dizer que as máquinas que povoam nosso cotidiano teriam controle próprio e exerceriam um poder diabólico. Poderse-ia concluir que: “as máquinas e os aparelhos nos detestam e a condição da nossa sobrevivência consiste em nos afastarmos deles, não os ligarmos à corrente, não lermos os manuais de instrução”(ANTUNES, 1998, p.177). O narrador confessa ter mais medo dos computadores do que da morte, do dentista, da lepra ou dos políticos. “Tenho medo da sua falsa inocência, da sua submissão aparente, da sua eficácia tenebrosa, do seu ódio silencioso e vesgo” (ANTUNES, 1998, p.178). Por isso escreve à mão, “para que os erros sejam meus e as personagens iguais às da minha cabeça e não resultado da imaginação delirante e asséptica de uma disquete esquizofrênica” (ANTUNES, 1998, p.178). Assim, quando se encontra diante de um computador, o narrador reage como um africano, cheio de pensamentos mágicos, para livrar-se daquilo que também parece ser da ordem de uma bruxaria: os pés descalçam-se-me de meias e sapatos, os ruídos de África inundam a sala, ergo a bengala do meu poder às copas das mangueiras em que os morcegos se penduram todo o dia de cabeça para baixo e largo a fugir, aterrado, capim fora, na direcção do rio onde os olhos dos crocodilos dançam à flor do lodo a espera da imprevidência de um cabrito. (ANTUNES, 1998, 178)

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Mudando o tom, mas continuando a tratar das dificuldades nas relações sociais, a “Crónica do pobre amante” refere-se à incomunicabilidade que prevalece na aparente comunicação. Segundo o narrador, os que “falam ou me puxam ou me empurram.” (ANTUNES, 1998, p.165). Os que puxam querem enfatizar a importância do que contam. Quase engolido pelo interlocutor, o narrador desvia a atenção da fala do outro e faz “descobertas não excessivamente agradáveis, pontos pretos, borbulhas, pêlos espetados no nariz” (ANTUNES, 1998, p.165) de modo que a pessoa vai-se tornando “um insecto monstruoso e carnívoro, prestes a mastigar-me com mandíbulas enormes”(ANTUNES, 1998, p.165). Aqui a metamorfose não acontece com o narrador, como no caso de Kafka e sim com o interlocutor. Mas, em ambos os casos, é a estranheza da relação sujeito-Outro que se evidencia. Haveria também aqueles que, ao puxarem, fazem uma espécie de faxina no narrador, que se vê invadido por gestos que catam “as impurezas como pássaros à higiene dos rinocerontes”(ANTUNES, 1998, p.165). Já os que empurram querem oferecer um peso às suas opiniões, “avançam em pequenos socos de amigável ódio” (ANTUNES, 1998, p.166). O narrador se sente como se estivesse em um ringue de luta de boxe, e incapaz de defender-se concorda com tudo, ansiando pelo momento que o embate estará terminado, quando poderá ter os cuidado do treinador após a luta: “a sarar-me com uma esponja”(ANTUNES, 1998, p.166). Haveria também os “que me rodeiam o pescoço com o cotovelo apaixonado para me soprarem na nuca desditas cochichadas, os que me afa*gam o joelho à mesa do restaurante jogando-me para o bife cuspo e amarguras” (ANTUNES, 1998, p.167). Enfim, as diferentes demandas de acolhimento ou de demonstração de poder que acompanham as falas seriam sentidas como ameaçadoras, levando à conclusão de que “dado que os acontecimentos nos ultrapassam finjamos ter sido nós os organizadores” (ANTUNES, 1998, p.167).

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Mas a crônica muda de direção em seu final e, só então, o seu título ganha novo sentido, pois ao referir-se ao encontro com a filha ocorre uma inversão de posição do narrador, que se torna o pobre amante. Se em relação aos outros o movimento é de fuga, ao receber o beijo da filha e escutá-la dizer: “-Gosto de si, pai” (ANTUNES, 1998, p.167), o narrador reage como os que puxam, tentando segurá-la consigo, querendo prolongar o momento: “- Não te esqueces-te de nada?” (ANTUNES, 1998, p.167) E vê a filha afastar-se. Em ambas as situações permanece no ar algo de excesso ou de falta na linguagem, apontando para interferências na comunicação que nos lembram que quem fala diz muito mais do que pretende, paradoxalmente marcando a incomunicabilidade humana, pois há algo de disputa e de carência que perpassa as relações humanas e é da ordem do insuportável.

3.7 – Voltando ao começo... O que se pode concluir a partir dos itens descritos neste capítulo é que, na verdade, só por um objetivo didático é que foi feita uma distinção do desamparo a partir de temáticas. Condição inerente à existência, o desamparo transita em todos esses itens e muitas vezes não se sabe como classificar uma crônica. Ela trata do desamor? Da morte? Do tédio inerente à vida? Da loucura? Da falta de esperança? Como mostra Stuart Hall (2000), ao refletir sobre a questão da identidade na pós-modernidade, o sujeito contemporâneo é fragmentário e perdeu todas as garantias, todas as certezas. Não há família, nem governo, nem religião, nem racionalidade para ampará-lo. A literatura contemporânea vem atestar essa fragmentação a partir de alguns porta-vozes do desamparo da humanidade. Entre esses, certamente, encontrase António Lobo Antunes e sua obra que é a escrita da incompreensão.

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Voltando às crônicas, em “Da morte e outras ninharias” o narrador questiona até mesmo o pacto proposto por Lejeune, ao indagar a questão da legitimidade do nome do autor escrito capa:

Cada vez menos os romances que publicam com o meu nome têm seja o que for de deliberadamente meu. Na minha idéia, e digo-o com convicção absoluta, limito-me a assistir. Chupam-me o sangue e o tempo e é apenas isso que me exigem. Deveriam editar-se sem autor na capa, porque desconheço quem o autor é. (ANTUNES, 2006, p. 145)

Com relação à temática da inter-relação vida e obra, Miranda (1992) afirma que a autobiografia literária situa-se “num centro de tensão entre a transparência referencial e a pesquisa estética” (MIRANDA, 1992, p.30). Entretanto, o crítico expande suas considerações, ao dizer que qualquer relato autobiográfico é uma auto-interpretação, uma maneira de se dar a conhecer. Assim, o relato autobiográfico é, inevitavelmente, revestido / entretecido de invenção. O conceito de auto-retrato (BEAUJOUR, 1980) parece mais condizente que o de Lejeune28 para se pensar nas crônicas de Lobo Antunes uma vez que o auto-retrato é tido como uma formação polimorfa muito mais heterogenea e complexa que uma narrativa autobiográfica. Não seria uma autodescriçao pois o autoretratista pretenderia fazer uma hom*ologia entre o eu e o mundo ( fazendo valer a banda de Moebius). Miranda (1983) vai tomar o conceito de auto-retrato para analisar o livro Água viva de Clarice Lispector, e que pode também contribuir para elucidar a questão da vida e do texto em Lobo Antunes. “O auto-retrato é um sistema de recorrências, retomadas, superposições e correspondência entre elementos homólogos e substituíveis, de modo que sua principal aparência é a do descontínuo, da justaposição anacrônica e da montagem.” (MIRANDA,

28

Mais tarde, o próprio Lejeune (1980) colocou em cheque o conceito de autobiografia.

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1983, p.222). Assim o auto-retrato prescinde da unidade, é uma escrita de fragmentos, uma vez que o narrador não conta o que fez, mas tenta dizer “quem é”, na tentativa de compreender o mundo e a si mesmo. O trecho abaixo parece coerente com o conceito de autoretrato:

Nasci assim, casual combinação de moléculas a que chamam António, nasci assim meio surpreendido , numa família que me toma por seu e engana-se,quantas vezes penso que não sou daqui, oiço o que não há, vivo noutro sítio entre aparições, onde as vozes deste lado me chegam confusas, remotas numa língua que não é bem a minha e acompanhadas de sorrisos, palmadinhas, soslaios curiosos - Nunca cá estás, pois não? (ANTUNES, 2006, p.141-142)

Na busca pela identidade o narrador gira diante de um espelho caleidoscópico que se recusa a lhe dar a resposta, mas o obriga a continuar sua busca impossível que não se detém, nem chega a nenhum porto seguro de certezas.

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CAPITULO 4 – A “DES-ESCRITA”

A literatura se edifica sobre suas ruínas (Blanchot)

Uma vez constatado que falta consistência à concepção de realidade e que não há nenhum saber garantidor de nossas certezas, torna-se impossível extrair uma verdade nomeável sobre o mundo e, especialmente, sobre os textos literários. A literatura, marcada por artifícios de construção, pode ser vista não só como um modo de desmontar, pela via dos enunciados, as certezas do sujeito cartesiano, mas também como possibilidade de apontar, pela via da enunciação, algo que ultrapassa a noção de verdade. Isto é especialmente importante se pensado em relação à obra de Lobo Antunes, que é prenhe de negatividades, tanto no que diz respeito ao mundo quanto à escrita. Essas negatividades podem ser vistas, mais uma vez, na crônica “O passado é um país estrangeiro”, a qual se constitui de uma série de negações que levam a afirmações poéticas. A começar pelo título, o passado surge desconectado do presente, “caras saltam do passado” (ANTUNES, 2006, p. 281), gastas pelo tempo, pedindo para ser reconhecidas. Surgem fragmentos de pessoas: olhos, sorrisos, vestígios, gestos. O tempo distante do passado retorna com a força do presente, como se estivesse intacto: “fragmentos de pessoas que me falam de uma altura que já foi como se continuasse a ser” (ANTUNES, 2006, p.281), é o estranho que se faz familiar, água de poço seco que sempre pode brotar de novo. A negatividade do passado também se faz em relação ao presente: “uma recusa interior em aceitar os desmandos da sorte, a certeza mais ou menos trêmula de ser um homem para mais tarde” (ANTUNES, 2006, p.282). O narrador afirma ser sempre outro, “um fulano que provavelmente nunca existiu, inventado por fotografias e recordações imaginadas” (ANTUNES, 2006, p.282). Em seguida refere-se à escrita também como uma vivência de

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estranhamento. Passou a vida a colecionar impossíveis, e assim virou escritor, pois ao procurar maçanetas em paredes sem portas entrou em quartos escuros e de lá saiu com páginas já escritas, “descobertas pelo tacto numa prateleira invisível” (ANTUNES, 2006, p.282). A escrita é tida como exercício dos sentidos: tatear, ouvir, farejar. Tem algo de primitivo na tarefa do escritor. Escrever é “uma profissão de silêncio até que as vozes nos toquem” (ANTUNES, 2006, p.283). Por isso, afirma ser impossível falar sobre os livros: são aparelhos sem folheto de instrução. Nega até mesmo a função de autoria: “pra começar nem é meu. Andava por ali, apanhei-o. Quer dizer fui apanhando à medida que escrevia” (ANTUNES, 2006, p.283). Pode-se ver a partir dessa crônica uma linha de continuidade nas descontinuidades apontadas pelo nosso autor: o tempo, a memória, o noção de eu e, finalmente, a de escrita. Se nas crônicas, como trabalhado nos capítulos anteriores, o autor trata da “desmemória”, assim como do desamparo pela via do desamor, da “des-razão”, poder-se-ia perguntar também se Lobo Antunes se coloca em defesa de uma espécie de “des-escrita”, que daria lugar ao estranho. Para defender essa premissa é preciso refletir mais profundamente sobre o que seria uma escrita marcada por um prefixo de negação. Como foi afirmado no primeiro capítulo, vários críticos literários têm-se colocado em defesa de um texto marcado pela negatividade, a começar por Barthes e Blanchot que, não por acaso, são também escritores e falam sobre o que é a literatura e a experiência literária a partir do lugar de quem também foi contaminado pela experiência de escrita. Esses temas também são retomados reiteradamente por Lobo Antunes em suas crônicas. Para pensar sobre o que seria uma des-escrita, portanto, faz-se necessário tecer algumas considerações sobre o que é literatura. Essa pergunta acompanhou Blanchot por muito tempo. Nos textos sobre crítica literária que escreveu, entre 1940 a 1980 deu respostas bastante originais, que de algum modo condizem com o que se encontra nas crônicas de Lobo

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Antunes, particularmente nas que versam sobre a escrita. Essa escrita que se debruça sobre si mesma vai-se fazendo mais presente em cada um dos três livros de crônicas, tornando-se cada vez mais uma evidência daquilo que o escritor português pensa sobre o que seria literatura. Blanchot desenvolveu várias concepções para falar sobre a especificidade do texto literário. Entre elas destacam-se: fora-linguagem, outra noite, desaparecimento, ele, neutro, outrem, obra, etc. Essas imagens - de caráter literário - são entrelaçadas, de modo que para tentar apreender uma é necessário recorrer à outra. No livro: A parte do fogo, Blanchot (1997) afirma que a outra coisa fundada pela literatura é sempre irreal em relação à realidade. Por isso, a negação e a morte fazem parte da palavra literária, que só encontra seu ser quando reflete o não ser do mundo. Ela só se realiza em sua própria falta e faz dessa falta sua possibilidade. O escritor pretende mais da linguagem, porque ele busca o momento que a precede, ele quer o que “é o fundamento da palavra e o que a palavra exclui para falar, o abismo, o Lázaro do túmulo... o Lázaro perdido e não o Lazaro salvo e ressuscitado” (BLANCHOT, 1997, p. 315). O escritor seria aquele que não se conforma que a palavra implique na morte da coisa. Ele quer restituir a coisa viva através da palavra. Nas crônicas de Lobo Antunes, essa temática pode ser encontrada em “O coração do coração”, quando o narrador afirma que o romance que gostaria de escrever seria aquele em que todas as suas recordações infantis estivessem “a acenar alegremente sentadas num parágrafo” (ANTUNES, 1998, p.45). e pudessem trazer de volta as pessoas, os sons, os afetos e o seu próprio rosto de hoje e de sempre. Assim, a literatura fala de uma realidade que passa e ultrapassa o familiar para jogar o leitor num mundo de estranhamento. A inter-relação estranho/familiar nos faz ver o mundo com outro olhar, abre um horizonte mais vasto, na medida em que inclui e enfatiza nele a dimensão da negação e da morte. Essa é a dimensão do fora-linguagem presente na linguagem

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literária. Lobo Antunes, em entrevista, afirma que quando escreve as primeiras versões de seus romances tem a impressão de estar de um lado da parede e o papel de outro. A sensação de cisão, de perda de si mesmo chega a ser espacial. Seriam as palavras que inventariam o texto: “o texto se constrói independentemente de mim.” (BLANCO, 2002, p.44). Ou, como está numa crônica: teria sido “ditado por um anjo” (ANTUNES, 2006, p.71). Em O Espaço literário, Blanchot (1987) faz uso de outra imagem, igualmente poética, para referir-se à literatura: trata-se da “outra noite”. Ela não é a que se opõe ao dia, fazendo com ele um movimento dialético. “A outra noite é sempre outra. E é somente no dia que se crê captá-la, escutá-la.” (BLANCHOT, 1987, p.168). A outra noite não está associada ao aterrador, mas à possibilidade de ouvir “o escoamento dos grãos de areia do silêncio” (BLANCHOT, 1987, p.169). Mas, para se chegar à outra noite, é preciso atravessar a primeira noite, morada da angústia e do medo. Tanto o significante “morte” quanto “outra noite” trazem o ideal de uma alteridade buscado pelo escritor. É preciso que o eu do escritor morra para que outra vida possa ter lugar. A escrita requer a morte do eu e é também a certeza de que o sujeito – aquele que se inter-cala entre dois significantes29 - se fez presente. São várias as crônicas de Lobo Antunes que mencionam a dimensão de perda como essencial para que a escrita possa ter lugar. Para efeito didático, aqui será tomado o conceito de fora-linguagem para, a partir dele, ser possível chegar a outras concepções de Blanchot. Levy (2003) fez um percurso na obra de Blanchot com o objetivo de esclarecer a noção de “experiência do fora”30, mostrando que, para o escritor francês, a literatura cria sua própria realidade. A linguagem da ficção – seu elemento real – tem o poder de colocar o leitor em contato com a irrealidade da obra. A linguagem literária, portanto, não seria da ordem da representação, mas da apresentação do 29

Como explicado no capítulo um, a partir das considerações de Laia (1997) Este conceito foi tomado por pensadores importantes do século XX, tais como Foucault e Deleuze que viram o fora como uma oposição à idéia de que a literatura seria um meio de chegar ao mundo externo e nele se engajar. Eles acreditam que a palavra literária tem um outro estatuto na medida em que é fundadora de sua própria realidade (LEVY, 2003).

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que Blanchot chamou de “outro de todos os mundos”. Esse outro não se refere a um objeto ausente, mas a um objeto particular – o objeto poético, que surge em seu esplendor, em sua realidade plena. Assim, a literatura seria um esforço, não para expressar o que sabemos, mas para “sentir o que não sabemos” (BLANCHOT, 1987, p.81). O que aqui ocorre é a transposição da irrealidade da coisa à realidade da linguagem. A realização da obra guardaria consigo sua própria impossibilidade. Tudo se passa como se estivéssemos em presença de uma verdade que não se apresenta pela via dos enunciados. Assim, é justamente porque se projeta para fora-linguagem que a linguagem literária se torna real. Ela funciona como um aviso à linguagem de sua insuficiência e é nesse movimento que ela termina por se fundar. Ela constitui esse eterno esforço para o impossível O Fora, de acordo com Levy (2003), é exatamente esse outro de todos os mundos que pode ser revelado na literatura. Não se trata de um outro mundo, mas deste mundo desdobrado em outra versão. É a partir dessa linguagem real que se pode ouvir “os grãos de areia do silêncio” e experimentar a ficção de maneira mais real do que aquela que se vive em muitos dos acontecimentos tidos como fazendo parte da realidade. O mundo imaginário criado pela literatura não se constituiria como um não-mundo, mas como o outro de todo o mundo, que Blanchot denomina de “outrem”. Pode-se depreender que se o símbolo e a palavra são entendidos como a morte da coisa, a característica da imagem31 seria a de afirmar a coisa em sua desaparição, tornando presente a ausência que a funda, como tão bem mostrado na imagem do Lázaro do túmulo. A partir de Blanchot poderse-ia concluir que o Fora seria o próprio espaço da arte. Nesse espaço, o artista seria aquele que perdeu o mundo e que também se perdeu, uma vez que já não pode mais dizer eu. A literatura diz respeito ao real, não por revelar uma realidade exterior, nem por ser a expressão 31

Aqui pode-se considerar que as afirmações de Blanchot, dando outro estatuto ao imaginário, foram utilizadas nas ponderações de Lopes, assim como aproximam-se do conceito de fictício de Iser, conforme capítulo um, desta tese.

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do eu lírico, mas por ser esse Fora que faz da linguagem literária uma não-linguagem e do sujeito um não sujeito (LEVY, 2003). Na experiência de se desdobrar para fora do mundo, os valores e as certezas são questionados. Assim, o narrador da crônica “Onde o artista se despede do respeitável público” (ANTUNES, 1998, p.131) define-se como um ser em ruptura que exprime sua época, opondose a ela. Nesse sentido, a experiência do fora é revolucionária, contestadora, pois destitui o sujeito cartesiano de suas certezas, encontrando-se exterior ao logos. O Fora, como experiência estética, funda-se no estremecimento do sujeito cartesiano. Quando se fala na morte do autor, tal como o fez Barthes (1988b), fala-se da morte do sujeito dono da verdade, assim como da morte da literatura como expressão de um eu interior. A separação entre dentro e fora, interior e exterior tornam-se obsoletas. Para Blanchot, a experiência do fora se caracteriza por esse trânsito do eu ao ele. Saindo da intimidade do eu, o discurso alcança a abrangência do ele. É isso que Blanchot denomina neutro, alteridade absoluta, vislumbrada no movimento de sairmos de nós mesmos na tentativa de alcançar a experiência do que é inteiramente fora de nós. O conceito de extimidade aqui, em sua estrutura moebiana, une o íntimo com o estranho, como se a questão que leva o escritor a escrever o interpelasse sem lhe dizer respeito, como se “vindo apenas de nós ela nos expusesse a algo totalmente diferente de nós” (LEVY, 2003, p.40). Também o leitor busca no texto algo inusitado, uma palavra estrangeira que o capture e o leve ao inesperado, produzindo efeitos de inconsciente, algo que permita “escutar a voz do corpo” (ANTUNES, 2002, p.111). Atingir o ele significa a possibilidade de todos experimentarem a literatura. Um discurso sem eu é um discurso de todos e de ninguém. O outro é aquele que não se entrega ao mesmo: “o fora ou o desconhecido que está sempre já fora da visão, o não visível que a palavra carrega” (LEVY, 2003, p.44). A relação com o outro não tende para a unidade, ela faz balançar as certezas. O ele narrativo marca a

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intrusão do outro na literatura, pois se destitui de toda subjetividade e de toda objetividade, escapando da dualidade sujeito/objeto e inserindo-se no campo do desconhecido, onde de nada adiantam nossos valores tidos como certos e universais. Já o neutro, de acordo Blanchot, nunca será revelado. Ele é acessível à palavra apenas se não for compreendido ou identificado. Não pertence nem à categoria de objeto nem à de sujeito. O neutro seria o Outro visto como alteridade absoluta. Ele fala desse espaço onde nada está sujeito ao conhecimento. Em outras palavras, parece que o neutro de Blanchot está bastante próximo da noção de real apregoada por Lacan. A partir do momento em que estamos fora de nós, “o real entra num reino equívoco onde já não existe limite, nem intervalo, nem momentos, e onde cada coisa absorvida em seu reflexo aproxima-se da consciência que se deixou encher por uma plenitude anônima.” (LEVY, 2003, p.48). Essa forma de ver a literatura põe em questão a concepção lingüística que tem as duas primeiras pessoas como condição da enunciação. O ele não é o que fala, nem a quem se fala. É a neutralidade do impessoal, vazio que faz com que as palavras circulem livremente. Ser impessoal é dar vez aos devires, aos encontros de forças, aos blocos de sensações. Mas não se pode esquecer que é através da linguagem que se alcança este espaço da não-linguagem. “é através das palavras, entre as palavras que se vê e se ouve” (DELEUZE 1997, p.13 citado por LEVY, 2003, p.49). Assim, a questão não é mais decifrar o segredo escondido por detrás da linguagem, o segredo é a própria linguagem e não o que ela esconde. Promover encontros ao acaso, deixar as palavras fluírem livremente, eis o que acontece,quando a literatura alcança a experiência do Fora. Esse fora-linguagem parece ser o alvo pretendido por Lobo Antunes em sua produção literária, seja ela de que natureza for. As crônicas não estão fora dele, pelo contrário, elas constituem um espaço particularmente interessante para procurar os vestígios do fora-

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linguagem, uma vez que em várias delas o nosso autor se debruça sobre o tema da escritura, afirmando o que busca na literatura que escreve. Como foi afirmado no capítulo 3, o Terceiro livro de crônicas

parece ser

privilegiado nesse sentido, uma vez que o tema da morte (particularmente da morte do pai) se faz mais presente e se articula com o da escrita. Assim, algumas crônicas do terceiro livro serão aqui analisadas, cada uma delas enfatizando esses diferentes momentos da escrita: o que a precede, o momento em que a escritura se dá e o momento da recepção. Na crônica “O próximo livro” o tempo que precede a escrita é um apagamento do eu para se chegar ao “ele sem rosto” de Blanchot. O próximo livro chega devagarzinho, é sombra difusa, perda de contorno de si: “zonas da minha cabeça deixam de me pertencer” (ANTUNES, 2006, p.225). Ocorrem mudanças no corpo, alteração dos batimentos cardíacos, “o início do livro traduz-se em sinais físicos” (ANTUNES, 2006, p.226), é algo que brota das vísceras. A despossessão não diz respeito só a um apagamento, mas algo diferente vai ganhando vida, os olhos “subitamente preocupados com o que não me interessa, certos vincos da memória de súbito vitais” (ANTUNES, 2006, p.225). O mundo à volta também se apaga, há “uma indiferença em relação ao cotidiano” (ANTUNES, 2006, p.226), um estranhamento diante de si mesmo “feições inesperadas boiando na pele” (ANTUNES, 2006, p.226). O mundo da linguagem se fragmenta em frases truncadas, ditongos, letras, anotações, que o narrador não compreende. O narrador vai em busca de outros autores, mas fica com a sensação de perplexidade, de que não é isso o que procura. Repete a frase atribuída a Cheever: “uma página de boa prosa é aquela onde se ouve chover” (ANTUNES, 2006, p.226), aquela em que se pode escutar os sons. Passeia pelos escritores, verifica as suas estratégias textuais e se convence de que, como num jogo de xadrez, é preciso “espalhar as peças a campo aberto, escrever é tentar vencer Deus a toda a largura do tabuleiro” (ANTUNES, 2006, p.226). Vencer Deus é abandonar o lugar protegido, perder certezas, ver-se “como um cego de mãos

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vazias a tropeçar” (ANTUNES, 2006, p.227). É preciso, como afirma Blanchot, habitar primeiro essa noite, para que a outra noite possa se anunciar. O narrador pergunta-se: “porque carga de água um livro demora tanto a fermentar.” (ANTUNES, 2006, p.227). É preciso aguardar que o romance se forme “como lhe aprouver”, ele tem vontade própria, tem “o seu caráter, sua fisionomia” (ANTUNES, 2006, p.227). É só a partir da perda que o mundo da ficção pode tocar o real:

Uma rapariga a pentear-se à janela numa atitude de cântaro e se for capaz, no papel, da perfeição daqueles gestos talvez consiga, talvez possa, um homem toca no ombro de uma rapariga, os braços baixam, o cântaro desaparece e não faz mal porque já entrou no livro e me espera. (ANTUNES, 2006, p.227)

O texto literário seria capaz de circunscrever o real fugidio e mostrá-lo vivo no texto, “sentado no parágrafo” (ANTUNES,1998, p.45). Em “O mecânico” (ANTUNES, 2006, p.39) o narrador convida os leitores a espreitarem a oficina da escrita. O escritor é equiparado a um mecânico que mexe com as emoções por trás, num trabalho que requer “finuras de relojoeiro” (ANTUNES, 2006, p.40). O mecânico precisa de uma atenção apurada, que exige diversas “chaves inglesas de canetas” (ANTUNES, 2006, p.41). No árduo trabalho da escrita faz-se “esforço por uma vírgula, um verbo. Tanto obscuro sistema elétrico que resiste. Tanta incerteza. Tanta alguma alegria” (ANTUNES, 2006, p.41). A escrita não se dá por inspiração, mas por persistência; por isso, não é romântica: exige ofício e método. Como acontece ao mecânico, ao escrever, suja-se até os cotovelos, não se sai isento do ato de escrita. Na “Crônica para quem aprecia histórias de caçadas” (ANTUNES, 2006, p.181), já analisada no primeiro capítulo, o ato da escrita é equiparado ao de uma caçada, termo entendido nos dois sentidos: de procurar e de apreender; ato de dar a vida e perpetrar a morte. Busca que se faz na perda, o escritor é a um só tempo o matador e a presa, à procura de “sua parte de trevas” (ANTUNES, 2006, p.182). O objeto poético, de natureza escorregadia,

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mostra-se de maneira sorrateira, surge rodeando o papel e exige um golpe certeiro. Aqui o foco é a alegria de capturar o objeto poético: “a crônica cai redonda no bloco” (ANTUNES, 2006, p.182). Para que não torne a desaparecer, é prudente chegar com cautela, pois aquelas que estão “apenas feridas são capazes de nos aleijar com um coice, uma cornada. Aplica-se por precaução a facada de um corte no adjetivo.” (ANTUNES, 2006, p.183). A escrita exige a retirada de excessos para que o objeto poético possa surgir em seu fulgor. Em “Júlio Pomar: pintor” é enfatizado o momento da recepção. Nesse texto, a pintura é o foco de atenção do narrador, como poderia ser qualquer outra manifestação artística. Compara o pintor/artista a um parteiro, capaz de mostrar uma: “cartografia completa não apenas de nós mesmos mas daquilo a que pertencemos” (ANTUNES, 2006, p.104). Para isso é preciso deixar os sentidos pensarem. Cabe ao artista iluminar “feito vela, quando a eletricidade falta” (ANTUNES, 2006, p.104). O artista é capaz de mostrar os leões que habitam os mundos secretos. Também pode ser visto como um carteiro: por seu intermédio “recebemos as cartas que sabíamos que nos escreveram e não chegaram nunca e também as que ignorávamos ter escrito, aquelas que nos fazem bater com a mão na testa pasmados - É isto” (ANTUNES, 2006, p.105). A arte é uma experiência vital, tanto para o autor quanto para o receptor. Para vivê-la na intensidade que exige, “é preciso tomar lições de abismo” (ANTUNES, 2006, p.105). Por isso quem tem medo não deve se aproximar. “Tudo é trabalhado nas vísceras, cheio de alçapões: exactamente como a vida.” (ANTUNES, 2006, p.105). O que se tem a transmitir é a parte de trevas, onde não há distinção entre o eu e o tu. Quando o ele é que escreve, a experiência da arte será transmitida como uma doença, contaminando quem chega perto. Esse é o motivo da advertência. No momento da recepção, os afetos que levaram à produção da obra são reavivados e revividos, tal é o poder da arte.

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Não se pode encerrar esta seção antes de lembrar mais algumas contribuições de Barthes que, assim como Blanchot, passou a vida voltado para o que chamou de escritura. Seus escritos, por si mesmos, são uma espécie de mostração do que pensa sobre a literatura. Escreve, de maneira fragmentar, textos que, tal como os de Lobo Antunes, não cabem em classificações de gênero. Ao refletir sobre os destinos da literatura, a teorização de Barthes se faz em nome de uma certa anti-literatura que ele busca meios de distinguir. O conceito de escritura, já exposto no capítulo um, é um deles. Em: Escrever...Para que?...Para quem? (1974) defende a noção de texto para referir-se a algo que não seria mais literatura, no sentido burguês da palavra. O texto implicaria numa subversão dos gêneros, não podendo ser especificado como romance, nem poesia ou ensaio. Afirma que o texto não seria um espaço aristocrático da escrita, caberia até mesmo nos jornais, ou seja, crônicas também podem ser tidas como textos. Os limites entre a escritura e a escrevência teriam a ver com o lugar do sujeito da enunciação. Ele é assumido na escritura e, quando não o é, trata-se de escrevência. Essas colocações do crítico francês corroboram nossa defesa de que, em Lobo Antunes, as crônicas, marcadas pela enunciação, estão muito mais voltadas para a transmissão de sensações do que para o relatos de histórias, elas trazem consigo todos os ingrediente para serem tidas como textos, no sentido barthesiano. Em O prazer do texto (1977), Barthes aproxima a escritura do que vai chamar de texto de gozo32, em contraposição ao texto de prazer. A escritura, definida como uma prática de fruição, seria aquela que permanece quando o sentido se retira. O crítico francês reconhece a dificuldade de se distinguir o texto de gozo do texto de prazer, mas coloca do lado do texto de prazer o conforto, a plenitude, a cultura e do lado do texto de gozo estaria a perda, o 32

Apesar da tradução para o português que consta no livro seja texto de fruição, Perrone-Moises (1978) esclarece que o termo fruição é inadequado. O termo original em francês é juissanse e teria vindo da psicanálise lacaniana. De acordo com estudiosa de Barthes: o gozo, nesse contexto, é o que o sujeito alcança no próprio malogro da relação sexual, que nunca pode suprir o desejo, como nada pode; que nunca pode fazer, de dois, o um. (PERRONE-MOISES, 1978)

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desconforto, a vacilação dos valores culturais. O gozo, de acordo com Perrone-Moisés, seria a realização paradoxal do desejo em sua dimensão de perda. Ora, não há dúvida de que as crônicas se encontram do lado da perda. Em “A confissão do trapeiro” (ANTUNES, 2006, p.133), o narrador se compara a um lixeiro em busca dos restos deixados pelos outros. Mas isso não quer dizer que os textos tratem de coisas sem valor. Pelo contrário, ao revirá-los, guardá-los, acaba descobrindo “brilhos, cintilações, serventias.” (ANTUNES, 2006, p.133). Barthes afirma também apreciar as esfoladuras do texto, muito mais que seu conteúdo. Esfoladuras dizem respeito às fissuras, espaço em que o texto deixa ver suas descontinuidades, seus vazios, espaço a ser habitado pela letra, em que o estranho se insinua. Esse livro é marcado pela psicanálise e está apresentada nele uma dimensão erótica do texto literário que já se faz presente a partir do seu título. A escritura seria a prova de que o texto deseja o leitor, provavelmente por seu poder de capturá-lo, mobilizá-lo e colocá-lo para trabalhar. Portanto, o erotismo da escrita não diria respeito ao conteúdo, aos enunciados, mas à possibilidade de seduzir o leitor, “até vos tocar e me tocar no por dentro de nós, onde aflitamente moramos, no encantado lugar de horror e alegria que é a única parte da vida do homem consciente.” (ANTUNES, 2006, p.135). Um texto, esclarece Barthes, é escrito a partir de duas margens: uma, sensata, em conformidade com a língua em seu estado canônico e outra margem móvel, vazia “que nunca é mais do que o lugar de seu efeito: lá onde se entrevê a morte da linguagem.” (BARTHES, 1977, p.12). Uma espécie de formação de compromisso33 entre essas duas margens se faz necessária, o erotismo da linguagem estaria na fenda entre essas duas margens. As crônicas de Lobo Antunes podem ser pensadas como textos, no sentido barthesiano, escritos a partir de suas duas margens. A resultante seria uma espécie de terceira margem que, como no conto de Guimarães Rosa se localizaria, ao mesmo tempo, em uma e em outra margem e nem em uma 33

O conceito de formação de compromisso usado por Barthes é freudiano. Originalmente, ele diz respeito às formações do inconsciente que são decorrentes de um compromisso entre dois senhores antagônicos: o desejo e a censura. A transmutação do conceito freudiano para a literatura é, como se vê, bastante pertinente.

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nem em outra, pois Barthes se refere ao encontro das duas margens como fenda, buraco, e não como superfície. Também o tema da recepção é trabalhado por Barthes em diferentes momentos. No livro S/Z (1992), o crítico/escritor define escrita e leitura como práticas de escritura. O texto escrevível seria aquele que convida o leitor a reescrevê-lo, a produzir a partir dele e não apenas a referendar o texto. Há algo a ser transmitido, que, como diz Lobo Antunes, contamina o leitor, desacomoda-o e por isso leva ao movimento. Tanto Barthes, neste livro, e Lobo Antunes em suas crônicas se colocam em defesa de que a escritura e a leitura sofram tal transformação, que não se poderia distinguir uma da outra, o leitor precisa ser marcado pelo texto. O que se pode ver nas crônicas é que a relação autor-leitor que se dá pela via do texto tem sempre essa dimensão intersubjetiva34. Por exemplo, em “Assobiar no escuro” encontram-se leitores reivindicando dos escritores o privilégio de fazer “juntos uma estranha viagem” (ANTUNES, 2002, p.125). Mais adiante, na mesma crônica, o narrador torna a referir-se ao elo possível entre escritor e leitor: “apetece-me fazer de cada página um barquinho de papel e deixá-lo navegar pelas sarjetas na esperança de que uma outra mão as receba como uma espécie de Índia onde cheguei por acaso.” (ANTUNES, 2002, p.125). Aqui a relação se faz de maneira não endereçada, o escritor lança seu barquinho de papel na sarjeta e ele pode ou não ser apanhado por outro. Não há uma mensagem dirigida a um receptor determinado, nem há uma garantia de recepção. O lugar a que se chega também é da ordem do inesperado, não se sabe os efeitos que poderão ser produzidos. Assim, pode-se concluir que a escritura tem o poder de juntar escritor e leitor ao transmitir, não um saber, mas a vivência de desvanecimento que se dá pela perda de certezas, contida tanto nos enunciados quanto nas enunciações liquefeitas. Pode-se dizer que o escritor, 34

Aqui deve ser considerado o sujeito da escritura (LAIA, 1997), diametralmente diferente do sujeito da consciência.

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pela via do texto, tanto experimenta quanto leva o leitor para a “outra noite”. A perda que se faz necessária para que a escritura tenha lugar será captada pelo leitor, enlaçando-o, arrancando afetos inusitados e produzindo movimentos. Esse parece ser o fascínio que caracteriza esse tipo particular de escrita. Se o desmanchamento de certezas é fundamental, uma reflexão sobre os temas do humor e da ironia torna-se imprescindível uma vez que, como já mostrado várias vezes no decorrer desta tese, eles têm presença constante nas crônicas e são artifícios de linguagem que têm como objetivo fazer vacilar o instituído pela via da irreverência.

4.1 – O riso como pharmacon: remédio e veneno

A partir do momento em que a literatura não pretende mais ser uma mimese, mas uma forma de produção, de formulação peculiar de um universo, considerando-se a própria linguagem como um mundo, o humor e a ironia podem ser vistos como estratégias literárias para evidenciar essa perda de certezas. A presença constante da ironia e do humor nas crônicas de Lobo Antunes é enfatizada, tanto pelo autor quanto pelos leitores em geral. Assim, neste tópico pretende-se refletir de que maneira a ironia e humor, tomados como estratégias enunciativas, podem contribuir ou não para o surgimento do estranho. A dúvida se faz na medida em que o estranhamento produz algo que é da ordem de uma tensão que se transmite do autor para o leitor e o riso é uma forma de descarga de tensão. Assim, num primeiro momento, o que se pode observar é uma certa oposição entre o estranho, compreendido como o que produz tensão, e o riso, entendido como o que descarrega a tensão, ou seja, desfaz o efeito de estranhamento. De acordo com a psicanálise, o cômico pertenceria ao princípio do prazer e o estranho ficaria no lado do além do princípio do prazer. Portugal enfatiza a força do

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imaginário que se faz presente no cômico, fortalecendo a imagem do eu construída a partir do outro. No cômico “o outro, nosso rival, é vencido e degradado” (PORTUGAL, 2006, p.46). Desse modo, a tensão da relação do eu com o outro, que produziria divisão interna no estranhamento, seria desfeita através do cômico. Ora, esse antagonismo depõe contra a hipótese deste trabalho, pois defende-se aqui que nas crônicas o estranho se faz presente. Se nelas a presença do humor é uma constante, como se pensar na relação entre o riso e o humor, assim como entre o humor e o estranho? Ou seja, onde situar o riso em relação ao estranho? Ele poderia ser tido como um remédio para curar o estranho; ou poderia ser uma espécie de veneno que serviria para acentuá-lo? A palavra grega pharmacon significa, ao mesmo tempo, remédio e veneno. Platão, no Fedro, usou esse termo para referir-se à ambigüidade da relação entre escrita e memória, ou seja, para a preservação da memória, a escrita é pharmacon: remédio e veneno. Será que a mesma duplicidade pode ser transposta para a relação entre o riso e o estranho? Para continuar esse raciocínio faz-se necessário refletir sobre a questão do riso. O riso e o trágico poderiam eventualmente andar de mãos dadas? À primeira vista essa questão pode parecer absurda, pois normalmente o riso está associado ao que traz contentamento e o trágico ao que causa horror. Entretanto, olhando com mais vagar, pode-se constatar que não é tão simples assim. A psicanálise tem contribuições quanto a este tema. Freud nos mostra que o riso tem dimensões surpreendentes e diversas modalidades. A primeira vez que o pai da psicanálise se debruça sobre o tema é no texto “Os chistes e sua relação com o inconsciente” (1905). Nesse momento, Freud vai dar uma ênfase especial à capacidade humana de subverter a linguagem para tratar de temas que angustiam o eu, de modo a produzir o riso, como acontece nos chistes. O witz35 é considerado por Freud uma estratégia para lidar com o que causa desprazer através de um movimento de torção da 35

Termo alemão com riqueza semântica difícil de encontrar equivalência em português. Pode ser traduzido por chiste ou dito espirituoso.

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linguagem, abrindo espaço para novos sentidos. Esse movimento é capaz de driblar a censura e surge de tal maneira que pode ser aproveitado, não só pelo sujeito que criou o witz, mas também por aqueles que o escutam e se sentem tocados por ele. Assim, no chiste, há três pessoas envolvidas: a que cria o chiste, a que é motivo dele e a que o escuta. Constitui-se a partir de uma situação social, pois, para completar seu circuito, o chiste necessita de um ouvinte que irá repassá-lo depois. Freud acredita que, para produzir o efeito desejado, o chiste precisa exigir um pequeno dispêndio de energia psíquica para a compreensão da mensagem cifrada que se apresenta condensada no dito espirituoso. O sentido do chiste não pode nem ser entregue de graça, nem exigir muito esforço. Ao ser decifrado, ele produz o riso como descarga do ouvinte e aí retorna para a primeira pessoa, que só então terá sua descarga de tensão. Já no cômico, a relação é dual, há apenas dois lugares envolvidos: quem é motivo do riso e quem ri. Outra diferença: usualmente o riso derivado do cômico não exige esforço. O cômico está associado a algo de excessivo e produz um fortalecimento do ego de quem ri, pois este se vê mais inteiro, em detrimento de quem é motivo para o riso. O humor faz parte de uma terceira categoria. Por ter como temática algo da ordem do trágico, raramente produz uma manifestação explícita de descarga. Ele não precisa necessariamente ser comunicado, já que é uma forma do sujeito rir de si mesmo. Se à primeira vista não observamos no humor uma vitória do ego, é porque ela só se dá pela via da linguagem, onde o sujeito pode driblar e contornar, sem precisar de negar, a dimensão trágica da existência (FREUD, 1927b). Ou seja, se o cômico diz respeito ao drama36, a temática do humor é da ordem do trágico. O que prevalece aqui parece ser o registro do real. Consoante essas afirmações de Freud, Roustang (1988) acredita que o riso em sua dimensão de trágico está ligado ao vazio, à incerteza. Ele é um movimento de ruptura em 36

Fazendo uma distinção entre o drama e a tragédia pode-se dizer que no drama o herói passa por percalços, mas consegue controlar as adversidades, trazendo, ao final, apaziguamento para o leitor. Já na tragédia não há vencedores. Os protagonistas e também os leitores deparam-se com o inevitável, não há heróis.

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relação a algo que está muito próximo: o sofrimento humano. O humor seria uma forma de afastar e evidenciar o sofrimento em relação ao qual é impossível abstrair-se. Ele está intrinsecamente ligado ao fardo da liberdade, por isso, não seria uma forma de poder, mas de potência.

O riso não resolve nada, simplesmente ele não esquece, ele mantém presente o insuportável sob os traços do alívio, ele dá lugar à abertura no fatal. No riso, justamente por causa dessa distância mínima, o sofrimento sabe a si mesmo e reconhece a si mesmo de tal forma que ele não precisa mais infligir aos outros o eco de seu barulho e de seu furor. (ROUSTANG, 1988, p.11)

Essas classificações, entretanto, não são tão precisas, e, na prática, as distinções entre os diferentes tipos de riso não funcionam tão bem. Entretanto, é importante ressaltar que o riso está ligado a uma subversão da linguagem que traz consigo a dimensão da surpresa e tem como resultado a produção de um desconserto veiculado pelo nonsense, pela contradição, pelo contraste de idéias. Se as distinções não são precisas, talvez possa se dizer que o estranho pode ou não ser favorecido pelo riso. Assim, pode-se concluir que, em relação ao estranho, o riso pode mesmo ser visto como pharmacon: dependendo do momento, será remédio ou veneno. As três modalidades de riso podem ser encontradas nas crônicas de Lobo Antunes, ora permitindo, ora destituindo o estranhamento. De acordo com Portugal (2006), o escritor deve ser capaz de sustentar o fio do imaginário num nível tal de tensão de modo que o estranho prevaleça e a narrativa não caia no nível do cômico. Acredita-se que, se o cômico está em oposição ao estranho, o humor pode favorecê-lo. Nas crônicas, o humor aparece misturado com uma dose de ternura. Para Calvino, “o humor é o cômico que perdeu peso corpóreo e põe em dúvida o eu e o mundo, com toda a rede de relações que o constituem.” (CALVINO, 1990, p.32). E esta leveza aponta para a possibilidade de acontecer uma espécie de travessia da angústia que levaria texto, autor e

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leitor para um outro lugar, em que a angústia não seria tamponada, mas tornar-se-ia matéria bruta que, ao ser macerada pela palavra, evidenciaria o poético. Várias vezes, no decorrer deste trabalho, encontram-se referências à presença do humor nas crônicas. “Da vida das marionetas” tematiza inicialmente a briga de um casal, em que a mulher refaz a trajetória da relação que tem com o amante – homem casado com outra mulher. Nesse desfilar de queixas, ela se diz vítima de alguém que a iludiu. Primeiro omitindo ser casado e depois, quando é visto no cinema com a esposa, de que seu casamento era falido, dando todas as desculpas chavões: que não sentia nada pela esposa, que era pelos filhos, que a esposa era desequilibrada etc. Em síntese, o primeiro sentido do discurso é de uma mulher rompendo uma relação amorosa porque constata que está sendo enganada pelo amante. Entretanto, sub-repticiamente vai surgindo um outro discurso que se faz pela via do corpo: “não me ponhas a mãozinha aí, tira a mãozinha daí” (ANTUNES, 2006, p.53). Até a essa altura a mulher diz desprezar o amante que afirma ser destituído de qualidades psíquicas e físicas. Mas a inconsistência até então apontada como sendo do homem, vai ganhando uma outra conotação:

Achas que mereço isto, que mereço sofrer (por amor de Deus afasta-te) Achas que devo ser infeliz por tua causa, respondes se achas que devo ser infeliz por tua causa, não sorrias, não penses que desculpo com essa facilidade toda, és velho, cheiras a velho, repara a tua corcunda, és um velho, convence-te, um gaiteiro de um velho e hás de morrer desajeitado Rui, não hás de compreender, por dúzias de anos que dures, que o fecho do soutien é para o outro lado que abre (ANTUNES, 2006, p.53)

O título – “Da vida das marionetas” – só fica claro no final, pois o sentido da crônica desliza e mostra que há diferentes níveis de comunicação numa relação dita amorosa e que o discurso feminino sobre o desejo é marcado de ambigüidades, pois aquilo que diz respeito ao sexual fala mais forte, está além dos argumentos racionais. Quando o sexual grita, tanto homens quanto mulheres são meras marionetes.

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O humor contribui para mostrar a fragilidade da condição humana no que diz respeito ao sexual. Nem narrador, nem leitor estão excluídos dessa condição que não é escamoteada, mas escancarada. Entretanto, fica-se com a pergunta: o riso aqui funciona em que direção: acentua ou dilui o estranhamento? Essa crônica mostra que, às vezes, não é simples distinguir o cômico do humor e reafirma a dimensão de pharmacon: remédio e veneno.

4.2 – A verdade/mentira da ironia

Duarte (2006) afirma que a ironia é uma estrutura comunicativa, em que um pacto particular, diferente do que é feito no uso comum da língua, é estabelecido entre o autor e o leitor. Algo só pode ser irônico se for proposto – tarefa do autor – e visto como tal – tarefa do leitor. Cabe a ambos perceber a ambigüidade da linguagem e fazer um pacto contrário do que é feito nas formas usuais de comunicação. Ambos devem perceber e explorar as múltiplas possibilidades de sentido. Pode-se dizer que o pacto irônico implica, para ambas as partes, uma certa rebeldia tanto em relação às verdades instituídas – no que diz respeito aos enunciados; quanto à enunciação – uma não submissão ao código da comunicação, permitindo que a linguagem possa tomar feições inesperadas. No que diz respeito à retórica, a ironia está a serviço de um partido, de uma verdade que se revela pela via do inesperado e pelo confronto com o habitual. Sua eficácia é devida também ao fato de trazer prazer ao ouvinte que se percebe sagaz e por isso torna-se cúmplice do ironista, reconhecido como autoridade a ser respeitada. Duarte (2006) considera que “esse tipo de ironia será assim basicamente um tropo, uma volta da seta semântica em que a palavra

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passa a ter outro conteúdo/significado, diferente do conteúdo/ significado primitivo.” (DUARTE, 2006, p.21). Ornato do discurso, a ironia traz consigo uma possibilidade de deleite que, somado ao prazer da compreensão, pode fazer chegar a um conhecimento com poderes capazes de preencher lacunas da convicção intelectual. Parece que, quando se trata de ironia retórica, o autor ainda se mantém no lugar poderoso de detentor do saber, uma vez que a distorção produzida no discurso teria um sentido predeterminado pelo emissor, que usaria da fluidez da linguagem para possibilitar uma produção de sentido já previamente planejada por ele. A posição do narrador é a de quem sabe tanto o que diz, quanto onde quer levar o ouvinte. A ironia retórica revela, portanto, muito mais que obscurece, qual é a posição do narrador. A ironia retórica, de acordo com Duarte (2006), corresponde a um primeiro grau de evidência da ironia, no nível em que ela pretende ser compreendida como tal. A mensagem irônica deve ser compreendida no sentido antifrásico. Há uma verdade a ser afirmada e uma mensagem a ser compreendida, o que pode significar uma ideologia a ser exaltada ou defendida. Em Lobo Antunes, a presença da ironia retórica está evidenciada em todos os livros de crônicas, especialmente no primeiro, publicado em 1998. Também é nesse volume que encontra-se um número maior de crônicas que criticam os valores sociais, as crenças e os costumes do povo português. Parece que neste primeiro volume, a ironia retórica seja o recurso enunciativo mais recorrente. Se a ironia tem como característica apontar a inconsistência dos valores, ela aponta nas entrelinhas uma outra verdade transmitida pelo narrador e captada pelo leitor. Pode-se dizer, baseando nas colocações de Duarte já descritas, que a ironia retórica reduz o estranhamento, pois o estranho não assegura, não há um pacto de sentido entre narrador e leitor, mas muito mais uma sensação de exílio, de divisão. Na crônica “A feira do livro” o narrador conta as atribulações de um escritor numa feira em que vender livros é equiparado a vender um objeto de consumo qualquer, como

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bijuterias marroquinas ou “fatos de treino fosforescentes” (ANTUNES, 1998, p.35). O narrador descreve-se como um autor atribulado, em meio a dedicatórias que tem que fazer, “numa aplicação escolar” (ANTUNES, 1998, p.35) – expressão que na crônica ganha o sentido de rebeldia. Também afirma, talvez para ser entendido pelo avesso, que não se queixa. É bom ser lido. As pessoas que me lêem “me ajudam a sentir que não lanço no mar garrafas com mensagens corsárias que não se sabe onde vão ter” (ANTUNES, 1998, p.35). A frase se destaca pois encontra-se o contrário em todas outras crônicas sobre a recepção do texto, quando o escrito é visto como algo que é lançado ao mundo e não se sabe para onde vai. A ironia em seguida recai sobre os compradores de livros: o velho que, desiludido, procura inutilmente por fotografias em Os cus de judas ou o rapaz que quer saber qual livro tem mais “cenas de cama”. Ou ainda a beata que pede indicação sobre o que comprar para a sobrinha que fez primeira comunhão e, por fim, o homem autoritário que dita qual deve ser a dedicatória do livro. Dessa maneira, o narrador mostra que o autor não está em defesa da liberalidade nem do moralismo na literatura. O erotismo presente em seu texto não está nos enunciados, ele é condizente com as considerações de Barthes (1977): está no poder do texto de seduzir e capturar o leitor. A crônica prossegue e o narrador conta que às sete da tarde encerra o expediente, “o letreiro com meu nome desaparece” e vai celebrar o “fim dos saldos”. Aqui a ironia recai sobre a fama. Divide com a filha almanaques do Tio Patinhas – presença da irreverência –, comprados numa prateleira da feira dedicada a “livros difíceis”. Nela se encontram também, diz ele: “outros títulos que me encantam: Psicanalise-se a si mesmo, Como enriquecer sem sair de casa, A vida sexual de Adolfo Hitler, Dez cegos célebres, A cura do cancro do útero pelo método espírita.” (ANTUNES, 1998, p.36). Ironicamente o autor se coloca contra as facilitações do consumo e a mercantilização da arte, pois sabe-se que os seus livros são considerados de leitura difícil e que o escritor é um tremendo crítico da literatura portuguesa

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contemporânea. Assim, o pacto leitor-narrador traz uma folga para o leitor que pode rir da ignorância dos outros, colocando-se, convencido pela retórica do narrador, no lugar dos irreverentes, inteligentes e cultos, que acham ridículos os apelos comerciais da feira de livros. Aqui a ironia se coloca do lado contrário ao efeito do estranhamento. Pois, se há uma crítica e contestação dos valores de costumes sociais, há também, nas entrelinhas, pela via do inconformismo, uma outra verdade a ser defendida pelo autor e partilhada pelo leitor. Mas, o conceito de ironia é mais amplo. Uma vez que a palavra ironia vem do grego e significa dissimulação, a mentira implícita na linguagem pode ter funções e graus de evidência diversificados. Se o primeiro grau é aquele em que o dito irônico deve ser percebido como tal e em que uma outra verdade, muitas vezes contrária a que se faz aparente, deve ser captada pelo leitor; a ironia pode guardar maiores sutilezas (DUARTE, 2006). A ironia humoresque surge diante da constatação de um absurdo irremediável e fundamental e sua força se encontra no prazer de contrastar a aparência com a realidade, na co-existência de dois sentidos dentro de uma estrutura dramática peculiar. De início um significado apresenta-se como verdadeiro, entretanto, gradativamente, surge outro lado da moeda: o primitivo significado soa como falso e limitado, sendo essencial a percepção da duplicidade, bem como a indecidibilidade do sentido. A ironia humoresque não pretende curar o mundo nem resolver seus mistérios, pois não trabalha no interesse da estabilidade. Um exemplo interessante de ironia humoresque está em “Minuete do senhor de meia idade” . A crônica desenvolve-se a partir de uma frase de abertura que é também seu tema: “A vida é uma pilha de pratos a caírem no chão.” (ANTUNES, 2002, p.85). Trata-se evidentemente da dimensão de perda e desconstrução inerente ao viver. Ao longo de dias, semanas, meses, vai se tentando, apesar dos tremores, como um malabarista, manter o equilíbrio de pratos e talheres “no meio dos restos de comida, dos restos de infância, de espinhas de peixe de pequenas mentiras e de folhas de alface de domingos felizes”

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(ANTUNES, 2002, p.85). Mas, “sabe-se lá porquê, os anos entortam, uma saudade escorrega” e eis a vida em cacos. Diante de tantos cacos, o narrador não se reconhece, assim como não reconhece o mundo a sua volta. O que resta é “trazer a pá e a vassoura, deitar a vida no balde” (ANTUNES, 2002, p.86). Mas catar os cacos é penoso. Às vezes tem-se que ficar “de gatas a sujar os joelhos das calças em nódoas de molho, a palma que se magoa num ossinho de frango” (ANTUNES, 2002, p.86). Num aparente movimento de fuga, o narrador termina a crônica dizendo que vai ser feliz em inglês ou em sueco numa esplanada de praia. Quem sabe, em outra língua, a vida dos outros é que cairia no chão.

A minha dobro-a na mala como se dobra um pijama Atenção aos vincos E visto-a de novo, antes de dormir, na esperança de encontrá-la, ao acordar, lá longe, no tapete, com um traço do seu baton Miss Ao comprido da gola. (ANTUNES, 2002, p.87-88)

Existe a um narratário feminino – Miss –, que, ao longo da crônica, parece designar o lugar da mulher na vida do narrador e que se apresenta numa postura inalcançável. Mas também é interessante marcar que a palavra Miss, em inglês, significa senhorita, mas também perder. Assim, o tom irônico reforça o humor em sua feição de trágico e o motivo do riso se amplia, pois além de dirigido ao narrador, estende-se para condição da existência. Nesse exemplo, a dimensão do estranhamento fica bem evidente e a ironia humoresque atua no sentido de acentuá-lo. O extraordinário da ironia é justamente o fato dela não ter um ponto de ancoragem (BARTHES, 1974). Na ironia humoresque a ambigüidade não se desfaz,

mostrando a

impossibilidade de se estabelecer um sentido claro e definitivo. Na ironia humoresque o

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desmanchar dos saberes vigentes que se apresenta na ironia retórica dá uma volta a mais e atinge também o narrador, que perde suas certezas. Em última instância, a ironia seria um movimento da linguagem que nega o referente. O que a ironia faz é revelar o caráter de suspensão, de limite, de ambigüidade interno à própria linguagem. Talvez possa se dizer que a ironia humoresque identifica-se com a literatura, dadas as possibilidades de trânsito que existem entre esses dois modos peculiares de comunicação. O que elas teriam em comum? Mostrar a capacidade humana de infringir o código da linguagem e da censura estabelecidos no espaço da alteridade – campo do Outro – para daí criar algo. Entretanto, diferentemente de uma infração comum, que pode produzir danos, o sujeito que cria, seja pela via do humor ou da literatura, recebe a aprovação do Outro. Em ambos, a linguagem não tem como objetivo uma reprodução da realidade, mas uma criação de novos sentidos. Em ambos, do desconserto faz-se uma espécie de concerto, mostrando que é o sem sentido proveniente da disjunção entre a palavra e a coisa que constitui o motor da criação, permitindo que surja algo surpreendente. Importa lembrar também que, no humor e na literatura, o sujeito é sobrepassado por sua criação. Milller (1987), ao estabelecer um elo entre a criação literária e o chiste, afirma que as palavras constituem ao mesmo tempo um excesso e uma falta, pois também há um intervalo entre o falar e o querer dizer. Há uma separação radical entre o sujeito que fala e o Outro - Outro que se busca, mas que está fundamentalmente fora de alcance. Assim, continua o autor, o que vai distinguir a linguagem humana da dos animais é justamente esse mal-entendido da comunicação: essa linguagem tão prenhe de significações é, ao mesmo tempo, incapaz de traduzir com clareza o sentido da vivência humana. Para a teoria psicanalítica, o humor e a literatura têm pontos de encontro importantes, porque ambos exemplificam essa relação subversiva do homem com a linguagem.

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Renato Mezan (1990) aponta algo nessa direção ao afirmar que a teorização freudiana sobre o chiste introduz o fio condutor das idéias de Freud sobre a estética. Ou seja, na teoria psicanalítica só podemos compreender a teoria da criação a partir do chiste, que também consiste num processo de criação. O autor afirma que: “todas as análises estéticas de Freud começam por colocar a questão do efeito produzido pela obra sobre o seu destinatário e é desse efeito que parte a reconstrução do processo criativo a partir da emoção sentida pelo espectador” (MEZAN, 1990, p.229). Pode-se observar que Mezan dá um estatuto diferente ao chiste e, conseqüentemente, ao trabalho de criação, na medida em que os aproxima pela presença do receptor, que é tocado e dá continuidade ao processo de criação. A criação ultrapassa o sujeito que a criou e, de acordo com Freud, o valor de uma obra está ligado a essa possibilidade de tocar o outro. Mas esse tocar, acrescentar-se-ia, pode ser uma espécie de carícia ou um arranhão. E a literatura do estranho toca com um arranhão: machuca, desarruma, desestabiliza. Por isso, Freud afirma que o estranho na literatura aponta para uma estética que se encontra além do princípio do prazer. Portanto, o riso, assim como a escrita, pode ou não ter caráter subversivo. Ambos constituem estratégias ricas para se lidar com o desamparo, embora os resultados possam ser divergentes. A escrita e o riso, sejam de que natureza forem, são derivados de uma falta; só que há escritos que pretendem obstruir essa falta e outros, evidenciá-la (PERRONEMOISÉS, 1990). O mesmo pode ser dito quando se trata do riso. Pode-se rir para tamponar o desamparo, ou, pelo contrário, para reafirmar sua existência. Tanto a arte de fazer rir quanto a de escrever, em relação ao estranhamento, são pharmacon: podem acentuá-lo ou desvanecêlo. No exercício dessas diferentes funções, o sujeito da escrita pode circular por diversas posições. É o que se pode ler no próximo item.

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4.3 – A circulação dos modos na escrita

Ler as crônicas de Lobo Antunes ao lado do livro de Blanco (2002) - Conversas com Lobo Antunes -, onde estão transcritas falas do escritor é uma experiência bastante interessante, principalmente no que diz respeito à questão da experiência de escrita. Um texto corrobora o outro, embora, nas crônicas ressalte-se a dimensão poética do trabalho com a linguagem. A posição do autor diante da escrita, em ambos os contextos, faz um giro de modo que a escrita, vista pelo escritor como sendo a questão central de sua vida (BLANCO, 2002), em diferentes momentos seja avaliada de modo diverso. Como foi feito em relação à temática do amor, também para se pensar na escrita, a estrutura modal de Aristóteles parece ser de grande valia. Assim, neste tópico, pretende-se pensar nos quatro modos lógicos de que fala o filósofo, partindo do possível e indo para o impossível; e depois do contingente ao necessário. O que seria uma escrita possível? Talvez aqui indica uma posição mais ingênua do escritor diante da imensidão de sua tarefa. Uma posição de quem não se interroga, acreditando que para escrever basta por uma palavra atrás de outra, ou ainda iludindo-se com a idéia de que o ato da escrita pode ser capaz de dizer uma verdade nomeável, não se questionando sobre o estatuto da verdade. Lobo Antunes diz que algumas crônicas são escritas com a mão esquerda – seu lado dominante – e outras com a mão direita, quando é a sua parte de trevas que se manifesta. Acredita-se que a escrita possível seja a que ele escreve com a mão esquerda. Talvez nelas caiba o rótulo de “coisinhas sem nenhuma pretensão” (BLANCO, 2002, p.113), dado pelo autor às suas crônicas em uma das entrevistas.

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Barthes (1971) afirma que a distinção entre escritura e escrevência estaria no fato de a escrevência priorizar os enunciados e ter um destinatário. No ponto de partida há uma suposição de saber do escritor, que parece acreditar ter um saber a ser transmitido, mesmo que esse saber seja transgressor. Isso parece acontecer em algumas crônicas de Lobo Antunes, pois embora as temáticas sejam marginais às questões do cotidiano, não há dúvida de que em algumas delas o leitor se sinta acalentado, distraído de suas preocupações, ou seja, são crônicas que cumprem o papel de entretenimento que costuma ser atribuído a esse gênero. Como já foi afirmado em capítulos anteriores, essas crônicas estão mais presentes no Livro de crônicas publicado em 1998. Pode-se ver que à medida que Lobo Antunes fica mais exigente com sua prosa, essa exigência vai sendo transposta também para as crônicas. Assim, no primeiro livro, serão encontradas várias crônicas que se referem às questões de natureza social: costumes religiosos, ideologia política, costumes sociais. Se a presença da ironia é uma tônica em toda a obra de Lobo Antunes, nesse volume será encontrada com mais freqüência a ironia retórica, como já afirmado anteriormente. O escritor propõe um jogo que logo é percebido e seguido pelo leitor. Há uma contestação do saber instituído, mas outro saber alternativo é colocado em seu lugar. Em “Os sonetos a Cristo” , por exemplo, a temática diz respeito às razões da escrita do narrador. A resposta é marcada pela irreverência: teria começado a escrever aos 13 anos, movido por necessidades materiais. Essa atividade seria equivalente a qualquer outra que pudesse ser exercida por um menino com essa idade: “impingir pensos rápidos no café ou exibir atestados de tuberculose nos semáforos” (ANTUNES, 1998, p.41), ironiza o narrador. Teria optado pelo caminho mais fácil: comover a avó. Os sonetos endereçados à avó exaltavam o sofrimento de Cristo:

Composta a tragédia passava-a à limpo em papel de carta cor de rosa com pombinhos no canto, enfiava-a no bolso, tocava à campainha da minha avó com ar

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pesaroso de catástrofe iminente e quando ela preocupada, me convocava no quarto a fim de se inteirar da desgraça que me acontecera (a desgraça era o meu forte e minha avó dedicava boa parte da vida a reparar-me as asneiras) Encostava-me ao oratório (...) extraía o soneto da algibeira e declamava-o o mais cavamente que podia revirando pálpebras de mártir. (ANTUNES, 1998, p. 42)

O tom propositalmente irreverente da crônica contesta os valores religiosos, assim como a relação entre o lugar sagrado da fé e o do dinheiro, pois “o cofre não sei porque andava sempre junto dos santinhos” (ANTUNES, 1998, p.42). Com “a devoção premiada”, o menino tinha acesso a uma entrada no estádio de futebol e a “um bagaço clandestino na Adega dos Ossos, bebido virilmente entre engasgos e espirros” (ANTUNES, 1998, p.42), lazer distante dos ideais religiosos da avó. No primeiro momento, a inocência da infância é desmistificada, salientando o aspecto diabólico da criança que manipula a avó, devido a suas ilusões tanto ao que diz respeito à religião, quanto à sua avaliação das intenções do neto. Mas no final da crônica, a pureza do passado é resgatada na memória e tanto a criança quanto a avó retornam recompostos no imaginário do narrador. Afirma que sua escrita continua endereçada à avó, é nela que pensa em cada livro que publica e ainda espera, além do dinheiro, sobretudo o “beijo que acompanhava a nota e que desde que ela se foi embora nunca mais recebi” (ANTUNES, 1998, p.43). Tudo fica então perdoado em nome do amor e de um passado perdido em que se vê cercado de afetos e, portanto, protegido do desamparo. E o que seria a escrita impossível? Lembrando que, de acordo com Lacan, a partir de Aristóteles, impossível é o que não se cansa de não escrever, esse modo de escrita é marcado por uma não-satisfação. Escreve-se sempre, e nunca se está plenamente satisfeito. A partir do modo impossível, a escrita é vista como um movimento incessante em busca da realização da obra – conceito criado por Blanchot para se referir à escrita como sendo da ordem do devir, algo que o escritor busca, mas nunca alcança inteiramente. Marcada pela impossibilidade de dar sentido ao real, a escritura pode mostrá-lo e não significá-lo. O real só pode se fazer

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presente através dos vestígios que deixa no texto, pois apesar de ser inapreensível por si mesmo, insiste nas entrelinhas. Por isso a obra nunca está totalmente realizada. “Não alcançar o que queremos é, no melhor dos casos, nosso amargo triunfo” (ANTUNES, 2002, p.19), diz o narrador em uma das crônicas dedicadas à escritura. Existe um ideal constantemente perseguido pelo escritor que ora julga estar em vias de encontrá-lo, ora acredita que a tarefa é impossível. Em entrevista, Lobo Antunes afirma que, à medida que caminha, cresce o seu interesse pela depuração da forma. “Cada palavra conseguida é como uma pedra que retiro de um poço” (BLANCO, 2002, p.64). Quanto mais caminha, mais percebe o quanto falta para percorrer. O que ele afirma é a busca e a incerteza do sucesso da empreitada. As crônicas constituem um espaço em que essa reflexão se faz constantemente presente. Elas constituem um momento de mergulho na literatura produzida e uma avaliação dela, uma interrogação sobre a própria escrita. Como isso aparece nas crônicas? A temática sobre a escrita impossível já se encontra no primeiro volume, particularmente em “O coração do coração” em que o narrador sonha com um romance que gostaria de escrever, assim o impossível aparece pelo avesso. O narrador afirma que após entregar ao editor “uma maço de folhas no tampo da mesa” (ANTUNES, 1998, p.47) e, ao alcançar a rua, dá-se “conta que perdido o romance perdi uma parte da minha identidade” (ANTUNES, 1998, p.47). A literatura é, pela via do impossível, uma vivência de perda, marcada pela negatividade, pela frustração de não ter conseguido exatamente o que se buscava. A temática ressurge com mais freqüência no volume dois, principalmente na crônica “Receita para me lerem” dedicada exclusivamente ao tema, que tem um tom de ensaio e foi analisada no capítulo um. Também em “A compaixão do fogo” há uma oposição entre o ato de escrever e o reconhecimento, apresentando a escrita como uma paixão desmedida: “é impossível escrever sem contradição, tortura, veemência, remorso e essa espécie de fúria

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indignada das sarças ardentes que lança as emoções uma de encontro às outras num exaltamento perpétuo..” (ANTUNES, 2002, p.153). E conclui: “Onde estiverem certezas, a arte é impossível.” E define qual seria o trabalho do escritor:

a minha tarefa consiste em desfazer livro a livro os tricots que construí, em desmontar os estados de alma que criei, em jogar para o lixo as estátuas que pretendi que admirassem, em ser suficientemente corajoso a fim de subverter as leis que tomei como dogmas, em tomar balanço a pés juntos sobre os meus erros, para chegar mais longe, o que me impede a satisfação da felicidade mas me reserva a esperança do prazer dos leitores. (ANTUNES, 2002, p.154)

Assim, a escrita seria mais um desmanchar do que um edificar: desmancha afetos, desmancha certezas, mostra o ser humano em seus vazios e em seu avesso e por isso, paradoxalmente, em sua universalidade. É por isso que pode tocar os leitores. No volume 3, essa temática da escrita é mais freqüente e as crônicas adquirem um refinamento maior na linguagem. Muito mais que explicitarem, pela via dos enunciados, o pensamento do autor a respeito de literatura, elas transmitem o que o autor pretende. Por exemplo, em “Qualquer bocadinho acrescenta, disse o rato, e fez chichi no mar” (ANTUNES, 2006, p.55) o narrador refere-se ao romance que está a escrever como incompreensível, diz que vai “avançando, às cegas, página fora, porque sei que o romance entende a si mesmo e isso me basta” (ANTUNES, 2006, p.55). Essa é a escrita a partir do modo impossível: traz necessariamente a vivência de estranhamento – não sei quem sou, nem o que escrevo – o narrador está sempre a afirmar diferentes vertentes do não-saber. Por isso escrever é estar diante do desamparo: “faço essa crônica sem saber onde as palavras me levam, tateando paredes com a bengala da caneta; aqui ali um degrau, uma esquina, um desnível que me estremece a frase” (ANTUNES, 2006, p.55). Afirma que “há alturas que necessito tanto que Deus se preocupe comigo” (ANTUNES, 2006, p.56). Esse pedido de acolhimento do Outro leva o narrador/escritor de

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volta à avó, já mencionada como a responsável pela sua carreira de escritor. Lamenta, nostalgicamente, sua ausência:

A (mão) da minha avó poisa-me na cabeça, demora-se a despentear-me, pensativa. Para onde foi ao morrer, avó, que não me visita nunca? Deitaram abaixo o seu prédio. Se não lhe fizer diferença volte a por a mão aqui em cima, trate-me por filho. Tratava-me por filho, lembra-se. Assim como assim acho que preciso de si. (ANTUNES, 2006, p.57)

Se na crônica “Sonetos a Cristo”, de 1998, a referência à avó é apaziguadora, aqui é uma lembrança doída; transformada em interlocutora, o narrador clama inutilmente por sua presença. Não tem sua visita e perdeu também sua morada. É no lugar de órfão, sem Deus e sem a avó/mãe para acalentá-lo que se põe a escrever.

A outra oposição dos modos se faz entre o contingente e o necessário. A escrita contingente é marcada por um quem sabe, por um pode ser, é aquela que pode cessar de não escrever. A palavra contingente é marcada pelo efêmero. Pode-se entender que o objeto poético, num momento fugaz, pode ser subitamente capturado, mesmo que seja perdido logo em seguida. Nas crônicas de Lobo Antunes, quando o modo contingente da escrita aparece, traz uma alegria pulsante para o texto. Como se o escritor subitamente gritasse tomado de emoção: veja, está aí, sinta o objeto poético em sua fugaz plenitude. Quando a contingência se dá, como diz Adélia Prado ao referir-se à palavra poética em “Antes do nome”, tem a força de um acontecimento: “em momentos de graça, infreqüentíssimos, se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão. Puro susto e terror” (PRADO, 1976, p.30). A metáfora da pesca, encontro entre a isca e o peixe na imensidão das águas, é utilizada por outros autores para se referirem a esse momento da escrita. Como já mostrado, Clarice Lispector também vai dizer que na escrita a palavra pesca a não palavra. Nos dois

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textos, o que se busca está além ou aquém da linguagem. Para Adélia Prado ele se encontra antes do nome, precede o simbólico. O objeto poético é real em sua irrealidade, é o imaginário que se torna real. Para isso precisa da palavra/vestimenta para se apresentar, mas a plenitude do vazio a ser mostrado, encontra-se além dela. No texto de Clarice, a não-palavra suplanta a palavra, mas não pode prescindir dela: uma está entrelaçada com a outra. Voltando a Lobo Antunes, a crônica “Para quem aprecia histórias de caçadas” precisa ser mais uma vez evocada, pois nela o narrador refere-se à emoção e a incerteza de capturar o objeto poético, como se fosse uma caça. Tomado de susto e terror, o caçador aguarda: sei que me espia e não se resolve a colocar a espinha ao meu alcance. Até quando? A mão vibra porque me deu a idéia de que se deslocou e porém não se deslocou nem isto, continua acolá, irritantemente vizinha, apesar de distante e não posso me dar ao luxo de desperdiçar um tiro: não tenho mais e crônicas não são coisas que se pegue de cernelha: com uma sacudidela amandam-se logo ao chão ou vão se embora.” (ANTUNES, 2006, p.182)

A emoção da captura da crônica/paca é descrita pelo movimento, o objeto poético é vibrante: “abeira-se do aguado do papel, ganha confiança e aí está ela inteira, a inclinar o pescoço na direção da página, pronta a beber. É altura de apontar cuidadosamente a esferográfica, procurando um ponto vital, a cabeça, o coração.” (ANTUNES, 2006, p.181) A transmissão da crônica também se faz pela enunciação. Mais que apresentada é vivenciada. Ela torna o leitor um caçador de objetos poéticos. Também em “Explicação aos paisanos”, Lobo Antunes se propõe a dizer o que é a criação e novamente a dimensão de contingência aparece, pois escrever: é ser vedor de água. Caminhar com a varinha, à procura, até que a vara se inclina e anuncia - aqui E então a gente pára e cava. E existe tudo, lá no fundo, à espera. (ANTUNES, 2006, p. 171)

Compara então o que tem valor artístico e o que é óbvio. O óbvio tem sucesso imediato e prazo de validade curto. É consumido e logo esquecido. O que o narrador pretende

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é que o leitor possa ir com ele, tornando-se também um vedor de água. Assim, pode-se “com alguma sorte pacientemente conquistada, entrar, nem que seja por um bocadinho, no coração da vida.” (ANTUNES, 2006, p.172) Nesse momento fugaz, por um bocadinho, o objeto poético cessa de não se escrever. É em nome desses momentos que vivem os escritores como Lobo Antunes. De maneira semelhante, na crônica “ Deus como apreciador de jazz” afirma ele que seus mestres são os saxofonistas de jazz, que mostram que uma obra de arte deve ser “uma bela desordem precedida do furor poético.”(ANTUNES, 2002, p.131)

Assim, ninguém

estaria tão perto de Deus quanto os saxofonistas. “Talvez haja pessoas que se sintam melhor na companhia de criaturas que não edificaram nada a não ser vidas sem alegria rematadas por agonias virtuosas em odores de açucena” (ANTUNES, 2002, p.132). Como Deus não é parvo, não as escolheria. Certamente iria preferir a companhia intensa de “alcoólicos promíscuos e pecadores sem remédio” (ANTUNES, 2002, p.132) . Essa posição é condizente a de Deleuze que, a partir de Blanchot, compara a arte a uma linha de feitiçaria que arrasta a língua para fora de seus sulcos, fugindo do sistema dominante. Fazendo um contraponto com o contingente, o necessário, diz Lacan (1985), é o que não cessa de se escrever. A partícula não muda de lugar e com isso, muda toda a história. Se no modo contingente o poético subitamente se escreve, no modo necessário o escritor está condenado a procurá-lo. A palavra condenação é forte mas parece ser isso o que diz, por exemplo, em Antonio 56 e 1/2: qualquer coisa ou alguém impunha-lhe que os fizesse e dava graças a Deus que aqueles a quem gostava fossem criaturas livres e o considerassem com uma espécie de indulgência que se sente em relação a quem perdeu um braço ou uma perna a serviço de uma causa insensata. (ANTUNES, 2002, p.18)

Esse pequeno trecho contém alguns pontos significativos para esta reflexão. O primeiro é que a escrita não se faz por um ato de escolha. Na verdade, no que diz respeito às questões radicais da existência, o ser humano não escolhe conscientemente, é fisgado. A

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exigência da escrita é vista como uma espécie de relação senhor/escravo, à qual o escritor está submetido. A escrita, como o amor e o ódio,

é vista como uma paixão, não se decide

racionalmente por ela. Isso não é uma regra geral, mas diz respeito a alguns escritores e entre eles está Lobo Antunes. Afirma também que escreve, não por ter algo a mais, mas sim porque o essencial lhe falta, como um braço, uma perna. O motivo da criação não é um a mais e sim um a menos. O escritor precisa saber quão pobre ele é e de “quanto precisa ser pobre para começar de novo” (BENJAMIN, 1987a, p.131). E a escrita seria uma causa insensata, talvez por ser interminável, talvez por exigir tudo, talvez por ser uma espécie de morte. Lobo Antunes diz que escreve compulsivamente de dez a doze horas todos os dias, independentemente de onde esteja ou de quais sejam seus compromissos. Para se ter uma vaga idéia da intensidade e obsessividade do trabalho do escritor é útil ver a ilustração (em anexo) que contém duas páginas manuscritas de um romance seu. Dá para se ter uma noção de como volta e torna a voltar ao texto, na tentativa de alcançar o que busca. Lobo Antunes diz também a Blanco que a escrita é, de longe, o que existe de mais importante em sua vida. Isso pode ser verificado também nas entrevistas: qualquer assunto que lhe é perguntado, a resposta cai inevitavelmente neste tema, sua vida e sua obra são inseparáveis. Alguns escritores, diz Brandão (2006), escrevem para sobreviver, a escrita se faz contra a morte. Lobo Antunes afirma que sempre o acompanhou uma “certa vontade de não ser” (BLANCO, 2002, p.91) e por isso a escrita seria uma espécie de atitude face à morte. Parece que o nosso autor escreve ao mesmo tempo a morte e contra a morte. Escreve a morte para apagá-la, paradoxalmente, evidenciando-a. A relação entre vida/morte e escrita é que torna esta última necessária. É preciso lembrar que na escrita há espécies diferentes de morte: para escrever é preciso morrer , mas terminar um livro é também uma espécie de morte. Nessa

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vertente, a escrita se faz no intervalo, entre duas mortes. E também escrever é uma forma de matar a palavra, dando-lhe outra vida. E por fim, escreve-se também para trapacear a morte, enquanto ela não vem. A escrita é tão necessária para o autor, que diz ser impossível responder a razão pela qual escreve. Seria como perguntar a uma macieira porque ela dá maçãs. Não é por escolha, nem por prazer, mas por uma determinação que é exterior às decisões do âmbito da razão. Ao referir-se um romance que está a gerar, o narrador da crônica “O mecânico” diz que: não há um momento que as palavras dele (o próximo romance) não me persigam, ampliando-se diminuindo, alterando-se, rearranjando-se de diversas maneiras, desafiando - Não nos apanhas Fugindo de mim e esperando mais adiante, trocistas - Não nos apanhas, pois não? (ANTUNES, 2006, p. 40)

O escritor passa a vida a correr atrás do que não sabe o que é, daquilo que não é evidente, afirma várias vezes que trabalha no escuro. A labuta da escrita só pode ser comparada com algo que implica em perda de certezas: pescar, caçar, ser vedor de água ou, quem sabe, procurar diamantes. Nesses trabalhos, os artífices são movidos por uma espécie de fé: acreditam que se insistirem mais um pouquinho alcançam o que procuram, e isto torna sua busca eterna, pois acabam por descobrir que suas vidas se fundam, não no encontro, mas na procura. Assim, Lobo Antunes passando pelo modo ilusório da escrita possível, caindo no sofrimento da escrita impossível e vivendo, por momentos fugazes, a alegria da escrita contingente, acaba por mostrar que escrever é da ordem do necessário, sua razão de viver.

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CONCLUSÃO

Tem mais presença em mim o que me falta (Manoel de Barros)

Após essa viagem através do universo das crônicas de Lobo Antunes, o que se traz nas mãos? Ausência de certezas, buracos não preenchidos, inquietações, questionamentos sobre essa obra e sobre o olhar que o autor dirige à vida. Se normalmente os fios de um texto devessem conduzir a um ponto de convergência, neste caso só se tem fios de águas que levam para um sorvedouro, redemoinho que engole qualquer pretensão de um modelo prédeterminado de saída para o ser humano. Como diz nosso autor: onde estiverem certezas, não há lugar para a arte. Essa constatação é o ponto vazio que se encontra no centro desta tese, atraindo para si todas as outras reflexões. De acordo com os autores estudados, o importante na noção de literatura é que ela estaria associada ao vazio, à desconstrução. O vazio deve ser o fundamental em qualquer manifestação artística. Deleuze e Guattari se valem da frase que teria sido dita pelo pintor chinês François Cheng: “Algo só é uma obra de arte se guarda vazios suficientes para permitir que neles saltem cavalos” (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p.215). São os vazios que permitem os movimentos. A des-escrita seria capaz de tocar o leitor em seus vazios, entrando pelas portas do corpo. O percurso deste trabalho se deu no sentido de mostrar as negatividades de uma literatura que quer mostrar algo que ultrapassa o campo da representação, permitindo que o real se faça presente através dos sentidos: do tato, do olfato, da audição de gritos que são dados no escuro. Para isso faz-se necessário que o sujeito cartesiano perca suas certezas e o escritor se lance num universo em que o eu se apresenta dissonante em relação a si mesmo e ao mundo a sua volta.

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Esta é a literatura em que os vestígios do estranho podem ter lugar, sem que haja uma oposição ao familiar. Construídos como uma fita de Moebius, esses termos não se excluem, um leva necessariamente ao outro. A “outra noite” pode ser vista no dia claro. Como diz Freud, o estranho está, como água em açude seco, sempre arriscado a surgir de novo. Na contramão da literatura clássica, esse constitui o ideal de uma certa literatura, que apresenta um estranho real que se deixa ver nas fraturas da noção de realidade que repicam no texto, que também se mostra fragmentado. O gênero crônica, ao contrário do que se possa pensar num primeiro momento, pode ser um espaço rico para mostrar os vestígios do estranho a partir das fissuras do texto. Em algumas crônicas pode-se ver uma linha de continuidade nas descontinuidades apontadas pelo nosso autor: do tempo fragmentado e da memória lacunar às diversas versões do desamparo, alcançando a escrita do desenredo, pois inevitavelmente uma leva a outra. O escritor é um exilado que precisa estar do lado de fora para tornar as suas palavras, palavras de todos, pois o estranho e o íntimo se encontram no mesmo lugar. Assim, o fato de a escrita das crônicas ter como ponto de partida fatos da vida do autor, não as tira do lugar de extimidade, uma vez que elas referem-se particularmente os vazios que as relações não preenchem, e o vazio é o ponto de encontro entre os viventes. Os relatos das crônicas que são marcados pela biografia do autor não reduzem o estranhamento também porque mostram um narrador que não sabe de si, em que a memória não resgata o passado nem organiza o presente. A busca é do não-sabido, núcleo sem nome da memória. Da mesma maneira, o que se repete é o que pede de novo, é aquilo a que falta sentido. O mesmo tem como núcleo a diferença. Ao lidar com as relações do eu com o Outro, em todos os níveis, pode-se ver um narrador cujo olhar incide sobre o vazio que permeia todas as versões do amor e que se depara sempre com sua impossibilidade, mas continua a insistir na procura. Também as relações

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sociais são marcadas pela incomunicabilidade e pelo nonsense, desde os modismos da contemporaneidade ao absurdo da experiência da guerra. Como mostra a banda de Moebius, o amor e a solidão são inseparáveis, assim como sanidade e loucura e, finalmente, vida e morte. Em suas crônicas, Lobo Antunes mostra que diante do desamparo inerente à existência, não há pai, nem celeste nem terrestre, que possa servir como garantia. No momento de concluir, importa voltar ao começo, refletindo sobre a primeira palavra título desta tese: vestígios. Vestígios são marcas pouco nítidas

deixadas pelo

caminho, sombras que denunciam uma presença mas requerem um trabalho de investigação. Walter Benjamin (1987b), ao questionar a história oficial, escrita pelos vencedores, propõe que se busque uma outra versão. Essa proposta pode ser transportada para a escrita das crônicas, em que Lobo Antunes se coloca à procura de vestígios: desmontando a concepção linear do mundo, convida a outras leituras, incitando a escovar a história a contrapelo, para evidenciar o desamparo. O cronista, assegura Benjamin, não deve distinguir os grandes acontecimentos dos pequenos, sua tarefa deve ser escavar ruínas e escombros, não só do passado, mas do sempre, “um tempo saturado de agoras” (BENJAMIN, 1987b, p.229). Essas escavações não são para se reencontrar algo inteiro, mas para buscar fragmentos do que foi esquecido, abafado: os vestígios que o tempo sufocou, personagens e episódios que ficaram asfixiados, memórias que foram negligenciadas, detalhes acessórios, para assim mostrar que a história pode ter outras versões. Na história do familiar há vestígios do estranho e para encontrá-lo também é necessário fazer um trabalho a contrapelo, precisa-se “cavar por baixo”, “ver que o mundo foi feito por detrás”, “tatear no escuro”. A escrita constitui esse trabalho de escavação. Coincidentemente, Freud (1938) usa a metáfora da escavação para referir-se ao trabalho analítico. A análise é um trabalho que se faz pela via dos fragmentos, ela também pode ser

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tida como um processo de escritura, em que se misturam, de forma criativa, memória e fantasia, possibilitando outras versões. Se um dos fundamentos desse tipo de escrita é o modo

peculiar de recepção,

conforme asseverado por Lobo Antunes e pelos teóricos, tanto da psicanálise quanto da critica literária, que serviram de baliza para este trabalho, é interessante interrogar sobre os efeitos das crônicas para a construção desta tese. Lobo Antunes compara o texto literário a um barquinho de papel, andando perdido nas águas da chuva, não se sabe onde vai parar. Isto porque a leitura do seu texto é também uma experiência de perda de certezas. Junto com o autor, também é preciso criar coragem para atravessar a primeira noite e chegar à outra noite, onde se pode ouvir a chuva ou os grãos de areia do silêncio. Maia afirma que “o saber que se alcança na voragem do texto que nos traga não é o mesmo do pensamento... há uma luta com o pensamento para que ele entregue o que ele não tem” (MAIA, 2004, p.51). A negatividade pode parecer uma forma pessimista de se encarar a vida. No entanto, Lobo Antunes não avalia a sua obra assim. Diz que se surpreende quando alguém diz que seus textos são tristes. O negativo pode ser visto como possibilidade, convite para se inventarem novos caminhos. Não acatar e ser um crítico das soluções coletivas, dos caminhos pré-traçados pode implicar também em abertura para o novo, na busca de possibilidades no um a um. O que se transmite em uma obra de arte não é a solução, mas a abertura para se buscar, na singularidade de cada sujeito, contingências favoráveis, a partir de constatação de impossíveis. Segundo Lobo Antunes: “quem acha que é outra coisa nada entende de literatura e, pior, nada entende da vida.” (ANTUNES, 2006, p.73). Provavelmente este é um ponto de encontro entre a literatura que privilegia o estranho e a prática psicanalítica. Ambos os campos exigem uma perda de certezas ilusórias, ambos são um convite à invenção, ambos se interessam pelo refugo acreditando que ele guarda revelações surpreendentes.

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Tanto Lourenço (2004) quanto Ramon (2004) afirmam, em suas reflexões sobre Lobo Antunes, que ele faz uma psicanálise37 da contemporaneidade. Ramon acredita que, justamente por não compreender o mundo, Lobo Antunes tem o poder de interrogar e desnudar o ser humano em seu desamparo, em sua falta de garantias. Pode-se dizer que o escritor faz o mesmo que a criança da história infantil: é capaz de apontar e nomear a nudez do rei, a contragosto de alguns. Se isso pode parecer cruel, porque tira as falsas ilusões dos “adultos”, constitui uma proposta de travessia. Na acuidade do olhar do escritor pode-se perceber, pelo avesso, uma ternura pela humanidade, admitida por ele mesmo. Blanchot (1997) afirma que o vazio é o próprio sentido das palavras. A equivocidade é, ao mesmo tempo, a doença e a saúde da linguagem. Sem equívoco não haveria diálogo, o mal-entendido é a possibilidade do entendimento. E quando o equívoco pode evocar o estranho, pode-se chegar na outra noite, onde se pode ouvir “o eco eternamente repercutido de sua própria caminhada, caminhada na direção do silêncio”. (BLANCHOT, 1997, p.169) Essa frase de Blanchot condensa o que de melhor se pode esperar de uma psicanálise assim como da literatura, e é certamente o que se encontra nas crônicas de Lobo Antunes.

37

Embora Lobo Antunes, em entrevistas a Blanco (2002), afirme que a Psicanálise não tem valor.

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APÊNDICE 1 Listagem das crônicas de Lobo Antunes trabalhadas na tese, por ordem de aparecimento Capítulo 1 Última crónica –1998, p.341-342. Crónica para quem aprecia histórias de caçadas – 2006, p.181-183. Da morte e outras ninharias – 2006, p.145-148. O som dos meus ossos – 2002, p. 263-265. Epístola de Santo António Lobo Antunes aos leitoréus – 2006, p. 193-196. Boa noite a todos - 2002, p. 33-34. O grande homem - 1998, p. 141–143. Uma sensação de para quê –2002, p. 305–307. Receita para me lerem – 2002, p.109–111. A confissão do trapeiro – 2006, p.133–135. O gordo e o infinito – 2002, p. 93–95. António 56 ½ - 2002, p.17–19. Capítulo 2 O osso - 2006, p. 43–46. ! – 2006, p.107–110. Província – 2002, p. 65–67. Herr Antunes – 1998, p. 97–100. A propósito de ti – 1998, p. 153–154. Da morte e outras ninharias- 2006, p.145–148. Uma jarra contraluz com um galhozito de acácia – 2006, p.141–144. O passado é um pais estrangeiro – 2006, p. 281–283. Antonio João Pedro Nuno Manuel – 1998, p. 233–237. Subsídios para biografia de Lobo Antunes – 2002, p. 49–52. O próximo livro – 2006, p. 225–227. Assobiar no escuro – 2002, p. 123–125. Minuete do senhor de meia idade – 2002, p. 85–88. Elogio do subúrbio – 1998, p.13–15. Província – 2002, p. 65–67. Eles no jardim – 2006, p. 15–18. Hoje apetece-me falar dos meus pais – 1998, p. 297–299. A velhice – 1998, p. 39–40. Província - 2002, 65- 67 Eu, há séculos – 2002, p. 45–47. Não entres por enquanto nessa noite escura – 2002, p. 37–39. António 56 ½ - 2002, p.17–19. O coração do coração – 1998, p. 45–47. Olá – 2002, p. 81–83. António 56 e 1/2 – 2002, p. 17 – 19. Há surpresas assim – 2002, p. 279–281.

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Capitulo 3 António 56 e 1/2 – 2002, p. 17–19. Manual de instruções- 1998, p. 105–110. Em caso de acidente – 2002, p. 41–43. Uma jarra contraluz e um galhozito de acácia – 2006, p.141–144. O acaso é o pseudônimo que Deus utiliza quando não quer assinar – 2002, p.149–151. O amor dos animais – 1998, p. 173–175. Escrito a canivete – 1998, p. 317–319. O grande e horrível crime – 1998, p. 123–125. A crisálida e eu – 1998, p. 169–171. Como nós – 1998, p. 91–93. O fim do mundo - 1998, p. 115–117. Teoria e pratica dos domingos – 1998, p. 119–121. A solidão das mulheres divorciadas – 1998, p. 127–129. As palavras cruzadas no jornal – 1998, p. 207–209. Espero por ti no meio das gaivotas – 2002, p. 61–63. Não entres por enquanto nessa noite escura – 2002, p. 37–39. O meu primeiro encontro com minha esposa – 1998, p. 259–260. Com a laranja na mão – 2006, p. 23–26. Crónica de natal – 1998, p. 195–197. Não foi com certeza assim mas faz de conta – 2002, p. 13–16. Sobre Deus – 2002, p. 89 – 91. Hoje apetece-me falar dos meus pais – 1998, p. 297–299. Ajuste de contas,- 2006, p. 289 – 292. Olhos transparentes da cor do musgo das árvores antigas – 2006, p. 83–85. Crónica de natal – 2006, p. 161 – 164. Epístola de Santo António Lobo Antunes aos leitoréus – 2006, p. 193-196. D – 2006, p. 59–61. Dois e dois – 2006, p. 149–151. A vida mais ou menos – 1998, p. 351–353. Antes que anoiteça – 1998, p. 327–329. Você – 2006, p. 125 – 127. De Deus como apreciador de jazz – 2002, p. 131–132. Chega uma altura – 2006, p. 27–30. Crónica de hospital – http: esvaziarnuvens.blogspot . com /2007-04-22-archive.html. António 56 e 1/2 – 2002, p. 17–19. No porto com Egito Gonçalves – 2002, p. 157–159. Emília e uma noites – 1998, p.183–185. 078902630RH+ - 2006, p. 111–114. Um pé a baloiçar, nu, fora do lençol – 2006, p. 67 – 70. Volto já - 1998, p. 291 – 295. Os meus domingos – 1998, p. 59 – 60. Os computadores e eu – 1998, p.177–178. Crónica do pobre amante – 1998, p.165 – 168.

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Capítulo 4 O passado é um país estrangeiro.- 2006, p. 281–283. O coração do coração - 1998 – p. 45–47. Receita para me lerem - 2002 - p. 109–111. O próximo livro - 2006, p. 225–227. O mecânico - 2006, p.39–41. Crónica para quem aprecia histórias de caçadas - 2006, p.181–183. Júlio Pomar: pintor - 2006, p.103–106. Assobiar no escuro - 2002, p.123–125. A feira do livro - 1998, p. 35–37. Minuete do senhor de meia idade - 2002 – p. 85–88. Sonetos a Cristo - 1998 p. 41-43. Da vida das marionetas - 2006, p. 51–53. Receita para me lerem - 2002 – p. 109–111. Deus como apreciador de jazz - 2002, 2002, p. 131–132. A compaixão do fogo - 2002, p. 153–155. Qualquer bocadinho acrescenta, disse o rato, e fez chichi no mar – 2006, p.55–57. Crónica para quem aprecia historias de caçadas – 2006, p 181–183. Explicação aos paisanos - 2006, p.169–172. Assobiar no escuro - 2002, p.123–125. De Deus como apreciador de jazz – 2002, p. 131–132. António 56 ½ - 2002, p. 17–19. O mecânico – 2006, p.39–41.

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Author: Kieth Sipes

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Author information

Name: Kieth Sipes

Birthday: 2001-04-14

Address: Suite 492 62479 Champlin Loop, South Catrice, MS 57271

Phone: +9663362133320

Job: District Sales Analyst

Hobby: Digital arts, Dance, Ghost hunting, Worldbuilding, Kayaking, Table tennis, 3D printing

Introduction: My name is Kieth Sipes, I am a zany, rich, courageous, powerful, faithful, jolly, excited person who loves writing and wants to share my knowledge and understanding with you.